13 de abril de 2017

Construção sócio-histórica da infância na América Latina e Caribe: as várias infâncias

Texto base de uma conferência do professor Vital Didonet, assessor legislativo da Rede Nacional Primeira Infância,. proferida na Universidade Católica do Peru, em Lima, em 2005, num Seminário Latino-americano sobre infância e diversidade.

 

Construção sócio-histórica da infância na América Latina e Caribe: as várias infâncias

A proposição de políticas públicas na América Latina e Caribe que encarem a Primeira Infância como prioridade ([1]) se inscreve no movimento, ainda incipiente, porém bastante sólido nos seus fundamentos, de formação de um pensamento latino-americano sobre a primeira infância. O discurso da Primeira infância está presente na política,

Uma pergunta inicial que se faz é sobre o significado e o lugar da infância. Como são vistos pelos adultos, pela sociedade e pelo governo os anos iniciais da vida? Que valor ou significado lhe atribuem? Como articulam o ser-criança e viver a infância como valores em si mesmos com a dinâmica de crescimento na direção da vida adulta? Que importância lhe dão no conjunto da vida humana? Como a criança é vista e representada na sociedade? Qual a posição que ocupa na hierarquia das demandas e das respostas do poder público às suas necessidades e direitos? Como os gestores governamentais – em particular os definidores do orçamento público –  hierarquizam as necessidades sociais e estas, em relação às econômicas? Enfim, quem é a criança?

A pergunta sobre o lugar da infância pode ser respondida desde diferentes âmbitos. Por exemplo:

o biológico, em que a situamos como uma etapa da vida do ser humano. Esse momento nos fala da importância dos primeiros anos para a formação das estruturas mentais, sociais e afetivas, sobre a repercussão das experiências infantis na personalidade adulta;

o imaginário: é o lugar que a criança ocupa em nosso inconsciente, e tem a ver com a infância que nós mesmos vivemos, com a imagem de criança que portamos em nós, sobre nossos afetos e nossa racionalidade acerca da infância;

o interpsíquico, que descreve a relação da criança com seus pais, irmãos, parentes, vizinhos, profissionais da infância, com os adultos que lhe são próximos. Esse lugar nos interroga sobre o que pensamos sobre a criança, como falamos e nos entendemos com ela, quanto nos ocupamos ou nos preocupamos com ela. Tem muito a ver com o imaginário e, também, com as condições concretas de nossa própria vida: afetiva, trabalho, a situação econômico-financeira, com os costumes ou as formas da cultura entender a infância etc.;

o social, que nos mostra onde a criança mora, como vive, de que se ocupa – brinquedo ou trabalho, outras formas de ocupar ou não ocupar o tempo), com quem se relaciona, o espaço que a sociedade lhe reserva (ou rouba) na rua, nos parques, nos conjuntos habitacionais, nas favelas, nos ambientes profissionais e especializados como a escolas, os hospitais, a igreja, o clube…;

o jurídico: espaço conquistado na segunda metade do século XX e começo do século XXI. Em nossa Constituição Federal, há um princípio que, se levado a sério, provocaria uma reviravolta política e social de grande magnitude. É o que está no art. 227: os direitos da criança e do adolescente devem ser garantidos com absoluta prioridade pela família, pela sociedade e pelo Estado. Tomemos o papel do Estado: se este cumprir o mandato constitucional de dar prioridade absoluta à criança e ao adolescente, teria que colocá-los em primeiro lugar, na lista das prioridades políticas e no orçamento público, nos programas de governo!

o espaço da cidadania: vetor de todos os outros espaços, nele se resumem todos, realizando-se ou frustrando-se. Somente podemos dizer que somos (ou seremos) uma sociedade desenvolvida, no sentido humanístico, se todas e cada uma das crianças têm (tiverem) um nome, um registro civil, a educação e a instrução, conhecimentos e desenvolvimento pessoal para realizarem-se como sujeitos no contexto social, econômico e político. É o espaço da inclusão, da democracia.

A brilhante reflexão do Dr. Alfredo Jerusalinsky sobre o “conjunto de operações formadoras do sujeito psíquico” nos conduziu ao interior da construção da criança. Essa é uma das dimensões da formação humana na infância. Dimensão de tal modo central e decisiva, que precisa ser mais conhecida, cuidada e apoiada pelos adultos, sejam eles os pais de crianças pequenas, sejam os profissionais da infância. Eu gostaria de arriscar uma hipótese, correndo o risco de ser exagerado, de que também a política para a infância deve se ocupar da dimensão interior da formação humana na infância. Para formular essa hipótese, faço a pergunta: A política social pode entrar no interior das relações inter e intrasubjetivas?

A pergunta parece ser radical e lidar com os extremos – de um lado, a política pública como espaço do social, como lugar do coletivo, como horizonte da exterioridade; de outro, a intimidade como espaço reservado e secreto do eu, onde apenas o indivíduo penetra e onde só ele tem poder de atuar.  O conhecimento, embora sempre precário, de como a pessoa se forma nos diz que há uma extensa área de interseção do “eu” e o “outro”, do indivíduo e o meio social e físico, do esforço pessoal e a cultura. A conhecida frase cunhada pelo filósofo espanhol Ortega y Gasset – Yo soy yo y mi circunstancia – diz que não há um muro opaco e intransponível entre público e privado, entre individual e social, entre sujeito e ambiente, entre moral e ética, entre a formação da pessoa como sujeito e sua inserção na vida cidadã.

Por isso, penso que a visão que temos da criança e a representação que fazemos da infância penetram nas formas como nos relacionamos com elas. Essa intervenção se dá desde o sonho de ser pais, passa pelo crucial período da gestação, toma formas bem mais concretas nos primeiros anos de vida no ambiente familiar e se expande no social, expressando-se nas concepções e formulações das políticas, das prioridades, dos programas e das ações.

A linguagem corrente, a imagem das crianças que os meios de comunicação mostram, as políticas e os programas de saúde, as políticas e as práticas de educação infantil, as políticas e ações de assistência social… estão impregnadas do olhar que os adultos têm sobre as crianças, das concepções de infância, das expectativas que guardam em relação a elas. Esse olhar, essas concepções e expectativas passam para o meio social, definindo o espaço em que a criança cresce e se desenvolve. Portanto, vão criando ao seu redor um campo de forças com as quais elas contam e entre as quais se movem para encontrarem o seu lugar e se afirmarem como sujeitos. Infelizmente, o inverso também é verdadeiro: a partir de um lugar marginal, excludente ou de rejeição que elas ocupem, elas podem negar-se como sujeitos e como cidadãs, aceitando ser submissas, subservientes ou revoltar-se contra o meio social que lhes fechou as portas da auto-realização.

Eu gostaria de apresentar-lhes uma reflexão sobre a construção da infância a partir de outro ponto de observação: a situação histórica, social, cultural em que as crianças estão inseridas, no Brasil e na América Latina e Caribenha. Penso que considerar esse aspecto (quer dizer, esse olhar, pois aspecto vem de spectare, olhar, observar, admirar) é, igualmente, fundamental na formulação de políticas para a infância.

Um dos temas freqüentes nas políticas sociais – e na educação ele tem sido insistente, embora ainda não tenha produzido as conseqüências pedagógicas necessárias para a transformação das práticas – é o da diversidade. Este tema está intrinsecamente ligado a outro que lhe parece oposto – o da igualdade.

O conceito de igualdade fundamental do ser humano se estende sobre todas as fases da vida, portanto, também à infância. A igualdade fundamental é que possibilita a ciência, pois “scientia de universalibus agitur” – a ciência trata dos universais. Ela não faz teoria sobre particularidades, sobre individualidades, mas sobre o que é comum entre os indivíduos. Assim, a psicologia da criança nos transmite o conhecimento de uma criança universal. Ela encontra o que é comum entre elas. Com esses dados podemos ir do Brasil à China, de São Paulo à cidade do México, de uma praia de pescadores em Mangaratiba/RJ a um seringal no Acre, olhar para as crianças desses diversos ambientes e concluir: são crianças, gostam de brincar, aprendem por meio da atividade, precisam sentir-se amadas e acolhidas, têm necessidade de carinho, usam diversas formas de expressão…

Poderíamos dizer, portanto, que temos uma infância universal: aqui ou em qualquer lugar do mundo, a criança é criança. E temos princípios universais válidos para seu cuidado e educação.

Mas se observarmos melhor, vamos encontrar muitas diferenças entre umas crianças e outras. Cada espaço geográfico e cada cultura tem características próprias, distintivas. E essas características não marcam apenas um ambiente exterior, mas também o pensamento, os sentimentos, os sonhos e esperanças das pessoas que nele vivem. Se isso é válido para os adultos, mais ainda o é para as crianças, pois estas estão vivendo o período estruturante de sua personalidade.

Se a diversidade está presente na geografia e no trabalho, nas formas de morar e de divertir-se, na expressão da crença no Ser superior e na maneira de encarar a vida e a morte, ela está, também, na educação das crianças e na formação das identidades pessoais. Sempre foram muito caros à educação infantil os princípios de que cada criança é única, que cada uma tem ritmo próprio, que deve ser atendida na sua individualidade, que na avaliação do seu desenvolvimento, ela só deve ser comparada consigo mesmo e não com as outras crianças. Portanto, a individualidade e a diversidade estão presentes desde muito tempo na mente e na prática dos educadores da infância.

Além das diferenças entre os indivíduos, encontramos diferenças entre os grupos sociais, na geografia e na história, isto é, nos diversos lugares e tempos. O próprio conceito de infância, a partir dos estudos de Felippe Ariès, é construído historicamente num determinado tempo e por uma determinada cultura. Variando o tempo ou a cultura, variam também a concepção do que seja a infância e as condições de vida e desenvolvimento das crianças.

Considerando a América Latina e o Caribe, uma breve análise sócio-histórica do início da colonização até nossos dias identifica distintas concepções de infância e formas do mundo adulto – tanto público quanto privado –relacionar-se com as crianças. E essas formas determinam, também, diferentes pedagogias. Distintos mundos, ora separados ora em conflito, ora se miscigenando, conformaram diferentes infâncias. Para exemplificar, sem minimamente esgotar a diversidade, aqui houve ou há:

 a) a infância trazida pelos colonizadores (espanhóis e portugueses), a do modelo europeu ocidental, no qual a criança tem um papel central na família;

b) a infância tal como existia entre os índios, inserida na cosmovisão dos povos que habitavam essas terras. Entre eles, a diversidade também era grande;

c) a infância dos povos africanos trazidos como escravos;

d) a infância miscigenada – do senhor e do escravo, do índio e do negro, do branco, índio e negro;

e) a infância vivida nas famílias dos imigrantes europeus do século XIX e do século XX (italianos, alemães, poloneses, japoneses, ucranianos, austríacos…) ainda isolados em “colônias”;

f) a infância dos imigrantes formada nas colonizações de imigrantes já interagindo nas mesmas áreas.

 Podemos dizer que na América Latina temos a infância mexicana, a brasileira, a infância chilena e a boliviana, a equatoriana e a venezuelana, uma guatemalteca, outra cubana, etc.  Quer dizer, tantas infâncias quantos países, tantas infâncias quantas culturas.

Mais: dentro de cada país, as infâncias também se diversificam. No Brasil, é fácil reconhecer que é distinto ser criança numa megalópole como São Paulo e na selva amazônica; ser filho de pescador e de garimpeiro; viver a infância numa colônia no sul do país e num fazenda de criação extensiva de gado no Mato Grosso ou Roraima; morar na caatinga e numa praia nordestina; ser de família de classe alta ou média e ser de uma família que vive em situação de pobreza; morar na favela e num morro dominado pelo tráfico e pelo tiroteio entre polícia e bandido; ser criança negra, branca ou indígena quilombola, reibeirinha… Não são apenas as condições econômicas e a geografia, a etnia ou o clima que determinam as diferenças, mas também a linguagem e o pensamento, os desejos e as possibilidades, as experiências e as oportunidades.

O mesmo podemos dizer do Chile: há uma infância em Santiago outra no deserto de Atacama, uma na zona austral outra nos Andes, uma vivida entre famílias descendentes de europeus e outras infâncias vividas entre os mapuches, os aymaras, os rapa-nuy, os quéchuas. Vamos à Bolívia e ali encontramos uma infância entre as famílias que seguem a cultura européia em La Paz e outra infância entre os aymaras, entre os guaranis ou os aruapes.

Conhecer nossa diversidade cultural e conhecer as nossas crianças é condições importantes para formular políticas públicas adequadas para a infância brasileira. O mesmo vale para as políticas latino-americanas e caribenhas. Nos alertou para isso o autor de Cem Anos de Solidão, o escritor Gabriel Garcia Marques, no discurso proferido quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura: “A interpretação de nossa realidade com esquemas alheios só contribui para fazer-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez mais solitários” ([2]).

Para romper a solidão, conquistar a liberdade e passar a ser conhecidos em nossa riqueza humana, é preciso, seguindo a lição de Gabriel Garcia Márquez, interpretar a nossa realidade e a realidade das nossas crianças com esquemas próprios, sob o paradigma da diversidade como riqueza e como identidade. Nisso somos iguais: na luta pela diversidade. Novamente Garcia Marques nos alerta: “É compreensível que insistam em medir-nos com a mesma vara com que se medem a si mesmos, sem recordar que os estragos da vida não são iguais para todos, e que a busca da identidade é tão árdua e sangrenta para nós como o foi para eles” ([3]).

Concluo com quatro propostas que considero centrais na reflexão que fiz aqui:

  1. Política para a infância significa “políticas para as infâncias”;
  1. Política(s) adequada(s) para a(s) infância(s) promove(m) as condições objetivas, materiais, da vida e do desenvolvimento das crianças e as condições psíquicas, inter e intra-subjetivas, onde as representações simbólicas se expressam;
  1. A cultura material e imaterial – que desenha o conteúdo e a forma da vida, as condições e possibilidades reais da existência e a utopia do possível – deve ser a fonte que alimenta a política e as ações para a criança;
  1. As crianças latino-americanas e caribenhas – e as brasileiras, no nosso caso – precisam ser olhadas por uma antropologia latino-americana e caribenha, que nos liberte progressivamente do predomínio dos paradigmas europeus e norte-americanos. Precisamos dialogar com a filosofia, a antropologia, a sociologia, a psicologia e a pedagogia latino-americana e caribenha, que nos falam das crianças reais que concebem suas possibilidades de expressão e realização com nossa diversa cultura.

Notas

[1] No Brasil temos o princípio constitucional de que os direitos da criança e do adolescente devem ser assegurados pela família, pela sociedade e pelo Estado com absoluta prioridade (art. 227 da Constituição Federal de 1988).

[2] Márquez, Gabriel García. Eu não vim fazer um discurso. Editora Record, 2010.

[3] Discurso proferido ao receber o Prémio Nobel de Literatura, também disponível em: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1982/marquez-lecture-sp.html

 

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