17 de maio de 2011

Inclusão escolar ainda deixa muitos de fora

Foto: Rodrigo Sena

Foto: Rodrigo Sena

 

Inclusão. No Dicionário Aurélio a definição é simples: “Ato ou efeito de incluir”.  Mas quando associada ao termo “escolar”, o verbete ganha uma conotação complexa, ancorada nas muitas precariedades do sistema nacional de educação: escolas inadequadas, profissionais sem capacitação e, pior, preconceito. E se para incluir no ambiente escolar é preciso transpor barreiras e penetrar num mundo fechado e silencioso, como é o dos autistas, a simplicidade da descrição citada lá do início não expressa a realidade enfrentada por pais e alunos especiais que buscam vaga em escolas regulares.

 

Garantia de inclusão de crianças autistas na rede de ensino – pública ou privada – não sai do papel

Narjara Cristina Cardoso Pessoa, mãe de Iago, sete anos, portador de autismo, sabe bem a diferença entre a teoria e a prática. Pela lei número 7.853, de 24 de outubro de 1989, que versa sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou intelectual é  crime punível com reclusão de  um a quatro anos e multa recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta”.

Mas, embora assegurada pela legislação, a vida escolar do filho começou bem tumultuada.  Aos quatro anos, matriculado no jardim 1, em escola da rede privada, Iago  foi vítima de maus tratos pela professora que perdia a paciência quando ele não a obedecia. O que era considerado ‘desobediência’, na verdade, se trata de uma característica do autismo: a dificuldade em atender comandos.

Narjara lembra que era comum ele voltar sujo de terra, porque era deixado no jardim enquanto outras crianças assistiam à aula. O menino chegou uma vez com o rosto arranhado na altura das orelhas, outra com hematomas nos braços e até picado por formigas. “Eu perguntava à ‘tia’ o que estava acontecendo e ela dizia que tinha sido brincadeira de criança. Frisava que meu filho era diferente dos outros. Não sabia o que era autismo e o tratava assim”, lembra Narjara.

Foi uma coleguinha de classe quem revelou que a professora o forçava a sentar, puxava as orelhas, o castigava. Foi um choque. Não levei o caso à justiça porque não queria expô-lo mais”. O abandono e a negligência já na primeira experiência de interação social geraram um bloqueio para atividades de desenhar e escrever.

Na busca por outra instituição,  enfrentou uma seqüência de “nãos”. Em uma escola, a lista de material chegou a ser tirada das mãos da mãe, após mencionar a necessidade do filho.  Há três anos, Iago está matriculado em escola, em Macaíba, para onde a família precisou se mudar, e tem aulas com horário reduzido e somente três vezes na semana, na turma de 2º ano do ensino fundamental. Com acompanhamento psicológico paralelo, a interação e comunicação de Iago, que se mostrou bem receptivo à câmera fotográfica, apresentam melhoras.

A educação inclusiva, de acordo com as diretrizes do Ministério da Educação (MEC), busca permitir a estudantes com qualquer tipo de deficiência, física ou mental, o convívio com demais alunos nas escolas de ensino regular, sem qualquer tipo de discriminação.  “O projeto de inclusão é muito bonito no papel, mas não funciona. Na verdade nem o Estado, nem a rede privada estão capacitados, conhecem e podem oferecer o que o autista precisa”, conclui Narjara Pessoa.

Apesar do avanço em políticas públicas, disse a assistente social Cristina Villani, mãe de Hítalo Bolivar, 25, também autista, os obstáculos de hoje se assemelham aos encontrados na infância do filho. “Ainda há muito desinformação, despreparo e preconceito”. Para assegurar a educação de Hítalo, a família era forçada a pagar 50% a mais na mensalidade para que ele ficasse em sala de aula ou “vagando pelos corredores”. A prática de cobrar mais caro ou obrigar os pais a custear um profissional de apoio ainda existe em algumas instituições, revela a vice-diretora da Associação de Pais e Amigos dos Autistas no Rio Grande do Norte (APAARN).

As aulas de Wildson Miguel, nove anos, aluno do 3º ano da Escola Estadual Maria Elizabeth Araújo, em Nova Natal, começaram há uma semana. A aceitação por parte de professores e estudantes, segundo a mãe Maria das Dores Palmeira da Cunha, 45, é fundamental para a socialização do menino. Apesar da escolaridade ser de competência do município, a mãe só encontrou vaga na rede estadual e o matriculou desde outubro do ano passado, período em que a Secretaria Estadual de Educação realiza o censo em educação especial, para o ano seguinte. Ela alega que ainda é cedo para avaliar se a metodologia atende as necessidades do autismo. “Mas a vaga esse ano foi mais fácil”, avalia Maria das Dores.

“Incluir não é só oferecer vaga”

Educar e integrar é a missão da educação inclusiva. Mas o entendimento parece ficar pela metade. Em geral, avalia a doutora em educação especial e professora do Departamento de Educação da UFRN Débora Nunes, o conceito se prende à oferta de vagas em escolas regulares, mas não garante a permanência do aluno autista em sala de aula.

Nos trabalhos de pesquisas que a professora acompanha, há relatos de alunos portadores de autismo que estão matriculados, mas não são inseridos nas avaliações e conteúdos repassados aos demais alunos e passam o tempo desenhando flores e casinhas no caderno. O potencial a ser trabalhado e explorado, no caso, acaba encoberto por uma atitude paternalista de aceitação e despreparo. “Ele está incluído na sala de aula, mas não acadêmica e socialmente”, ressalta.

A inclusão do autista em turmas com crianças ditas normais permite a construção de modelos de comportamento e relações. Débora Nunes ressalta que a inclusão deve ainda quebrar o preconceito e assim evitar o bullyng. “Alguns estudos mostram que quando se sensibiliza e desmitifica o que é o autismo ou outra deficiência, não somente aos educadores, como também para alunos e pais da turma que está inserido, o acolhimento é maior  e os resultados mais positivos”, analisa Débora Nunes.

O problema não é restrito à qualidade na formação do professor, mas ao formato do ensino. O atual modelo aporta somente os autistas nos primeiros anos dos ensinos infantil e médio, com repertório melhor e com baixo comprometimento cognitivo.  Em casos mais crônicos e pela complexidade da estrutura dos níveis mais altos de ensino, os autistas ainda ficam de fora.

Para funcionar, explica a especialista, o modelo deve seguir um plano individual de educação – mesmo que aplicado em ambiente coletivo  – que valorize as habilidades cognitivas e funcionais de cada aluno. O trabalho demanda a partilha de competências  entre professores, terapeutas ocupacionais, psicólogos e fonoaudiólogos, além da participação dos pais e familiares no sentido de apontar preferências e potencialidades do estudante e uso de técnicas e instrumentos, como a prancha de comunicação.

Apoio

Em Natal, familiares e amigos encontram apoio, assistência e informação sobre o autismo junto à  Associação de Pais e Amigos dos Autistas do Rio Grande do Norte (APAARN). Criada em 1996, oferece atendimento  em psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, pedagogia, além de atividades esportivas e oficinas de artes, que priorizam a socialização.

A APPARN está localizada na Rua Nilo Ramalho, 1724, Tirol, próximo a Unicat. Telefone: 3211-8354.

Dever da escola é receber todo aluno especial

O subcoordenador de educação especial da Secretaria Estadual de Educação, Joiran Medeiros, admite haver dificuldades para a inclusão, de fato, se concretizar, apesar das escolas estarem abertas a receber portadores de necessidades educacionais especiais. Orçamento reduzido para adequação de espaços e aquisição de equipamentos,  falta de intersetorialidade com atendimento multidisciplinar e, sobretudo, a postura do educador são, segundo Medeiros, os grandes entraves para efetivação das diretrizes do MEC.  “O discurso de não estar preparado é uma falácia preconceituosa, que infelizmente ainda existe”, enfatiza Medeiros.

Segundo censo de 2010, foram matriculados 10.672 alunos com deficiência em todo Estado. Cerca de 80% em  escolas regulares, no sistema de inclusão, a maior parte nos primeiros anos da educação infantil e ensino fundamental. “Não há adaptação curricular e todos os alunos recebem o mesmo tratamento. A Assistência de Educação Especial (AEE) deixou de ser um modelo substitutivo, para ser complementar e suplementar em toda escola”, observa Medeiros.

A capacitação dos professores é feita por cursos presenciais e no formato à distância, por meio de parceria com o MEC e universidades, sobre tipos de deficiência e tecnologias assistivas. “A capacitação ainda é insuficiente, mas está em processo para expansão”, reconhece o subcoordenador, que não soube informar quantos receberam a formação. Não há psicólogos educacionais no quadro de funcionários da Secretaria. O apoio aos professores é feito por meio do Programa de Assistência Itinerante, com profissionais que visitam as escolas – 120 em Natal – a cada 15 dias, para atender alunos, orientar professores e pais.

O que é autismo?

O autismo é um transtorno invasivo do desenvolvimento, que se manifesta em dificuldades de interação, comunicação e imaginação. Apesar das causas ainda serem desconhecidas, hoje é possível saber se uma criança de 3 meses sofre de autismo.

O diagnóstico é feito por meio de testes de comportamento e questionários respondidos pelos pais. Quanto antes iniciado o tratamento, melhores são os prognósticos. “A falta de conhecimento dificulta o diagnóstico, que muitas vezes é feito pela mãe que percebe as limitações, procura informação e identifica o problema”, afirma a  a psicóloga Claudia Regina Leite Cavalcante.

Alguns sinais podem indicar que a criança é portadora da síndrome. São crianças que não olham no rosto, focam a visão em um ponto. Não interagem. Apesar de saberem e poderem falar, se fazem de  mudas. Não aceitam o toque e são altamente seletivas. Podem ainda apresentar esteriotipismos, como balançar as mãos ou corpo, repetir o que ouvem, apresentar dificuldade de concentração, agressividade e hiperativismo.

Por ser bastante visual, avalia Claudia Cavalcante, a comunicação e o aprendizado devem se valer de imagens associativas. Outro ponto é a construção de rotinas.

BATE-PAPO: Rebecca Nunes  – Centro de Apoio às Promotorias

O que diz a lei sobre a obrigação da escola em receber os alunos com necessidades especiais?

Pela Constituição Federal, a educação é um direito de todos,  independente das características das crianças e dos adolescentes.  A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência afirma o reconhecimento do direito das pessoas com deficiência à educação e, para efetivação deste direito, deve ser assegurado “sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida”. Estabelece ainda a obrigação de se assegurar a não exclusão do sistema educacional geral, em escolas pública e privadas, sob a alegação de deficiência.

Em caso de falta de vagas ou recusa em aceitar o aluno, qual orientação aos pais? A quem recorrer?

Deve se observar se após a solicitação da vaga para o aluno com deficiência foi matriculado outro aluno sem deficiência para a mesma classe e turno.  Nesse caso, ou em caso de recusa da escola em aceitar o aluno por motivo da sua deficiência, é importante procurar o Conselho Tutelar, em se tratando de criança ou adolescente com deficiência, ou  diretamente o Ministério Público.

A escola e os professores são passíveis de alguma penalidade/punição?

Sim.  A recusa, suspensão, procrastinação, o cancelamento ou o ato de fazer cessar a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que o interessado possui, pode configurar o crime previsto na Lei nº 7.853/89, punível de reclusão de um a quatro anos e multa.

A escola pode, após matricular o aluno e as aulas serem iniciadas, orientar que fique em casa até se estruturar e receber professores de apoio?

Não é justificativa recusar o aluno com deficiência ou com transtorno global de desenvolvimento pelo fato da escola não se sentir preparada para recebê-lo. A escola deve apresentar uma alternativa, sem que isso implique no afastamento do estabelecimento de ensino. A escola tem a obrigação de oferecer o profissional de apoio. O financiamento dos serviços de apoio a estes devem integrar os custos gerais com o desenvolvimento do ensino e não deverá ser transferido às famílias, por meio de cobrança de taxas ou qualquer outra forma de repasse da referida atribuição.

Qual o número de denúncias desse tipo, junto ao Ministério Público?

Nos últimos tempos temos recebido mais denúncias e reclamações sobre problemas ocorridos em escolas envolvendo a educação de crianças e adolescentes com deficiência. Acredito que este seja um sinal de que aquelas estão efetivamente chegando às escolas. A sociedade não pode mais esperar que as escolas se sintam preparadas para, então, começarem a receber alunos com deficiência. Elas têm a obrigação de receber os referidos alunos e de lhes ofertar todo o apoio necessário para que possam aprender e se desenvolver. É isto que garante a nossa Constituição Federal.

 

Fonte: Sara Vasconcelos – Tribuna do Norte

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