17 de maio de 2011

"Pequenas Misses"

 

Já recebi diversas mensagens e pedidos para assistir a um programa de televisão chamado “Pequenas Misses” (Discovery Home&Health).
O titulo já me fazia imaginar o tipo do programa, e também tinha a lembrança de ter lido alguma crítica na imprensa. Mas, por causa da insistência, decidi assistir.

Era mesmo o reality show que eu imaginava. Entretanto, devo confessar: não esperava ver tudo o que o programa mostra. Você não teve a oportunidade de ver, caro leitor? Pois eu indico. Por quê?

Primeiro, porque é um retrato cruel do tipo de relação que o mundo contemporâneo aponta para os pais estabelecerem com seus filhos.
Claro que a maioria deles não quer prepará-los, como mostra o programa, para participar de concursos de misses infantis. Mas e se tomarmos o programa como uma pista? Vamos analisar sob essa perspectiva.
As mães e os pais mostrados no programa tratam seus filhos sem o mínimo respeito.

As crianças, muito pequenas, são submetidas aos mais diversos tratamentos de beleza “que vão dos cabelos à pele, passando por sessões de bronzeamento artificial””, que são verdadeiras torturas para elas, com idades entre dois e nove anos.

Elas reclamam, apresentam expressões faciais de dor e até de desespero, fogem etc. E qual a reação dos pais frente a essas manifestações dos filhos? Ignorar solenemente. Eles pensam só no que eles próprios querem, nos seus anseios para os seus filhos.

E por que esse querer dos pais é diferente de quando as crianças são levadas ao médico, por exemplo, e apresentam as mesmas reações citadas acima?

Porque cuidar de uma criança e educá-la, mesmo à sua revelia e ao seu contragosto, é parte do processo de formação de todos e, em especial, de uma sociedade melhor. É assim que mantemos a humanidade e o mundo.
Voltemos ao programa. Os filhos são também submetidos aos mais variados e intensos ensaios cotidianamente: de coreografias, caras e bocas, andar de passarela etc., apenas com o intuito de ter uma boa performance nos desfiles. E, de novo, os filhos recusam, fazem birra, brigam com os pais, que continuam a ignorar seus apelos para dar encaminhamento ao projeto que têm na vida.

Isso nos mostra que os filhos são tratados como posse dos pais. Esses se sentem no direito de agir como querem, sem considerar que a criança tem direitos que devem ser respeitados.

Entre tais direitos, cito dois apenas: o de viver a infância e o de ser visto como um ser humano em formação que é distinto dos seus pais.
Será que os pais do programa são muito diferentes daqueles que querem que os filhos aprendam precocemente, em vez de brincar? Daqueles que enchem a agenda dos filhos com aulas de todos os tipos? Dos que procuram definir o futuro dos filhos do modo como eles arquitetam?

Creio que a diferença reside apenas em um ponto: os pais mostrados no programa agem de modo grotesco, enquanto os outros sempre parecem bem-intencionados aos olhos dos outros, da sociedade em geral. Mas, em todos os casos, os filhos são quase que ignorados em sua existência.
Os filhos só podem ser encarados como um projeto de vida dos pais se esse projeto for bem mais amplo do que o futuro pessoal da criança.

Educar um filho para que ele contribua para a vida ética, para que tenha autonomia, para que aprenda a ter respeito próprio e ao outro, por exemplo, pode, sim, ser um projeto de vida dos pais.

Mas isso supõe olhar para o filho, ouvir o que ele comunica mesmo em silêncio, relacionar-se com ele afetivamente para ensiná-lo a se tornar um ser humano livre, autônomo e que tem amor à vida.

 

 

Fonte: Equilíbrio – Folha de S. Paulo

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