07 de agosto de 2019

Paternidades e Primeira Infância: tempo e movimento

Hoje, dia 31 de julho de 2019 – dia em que tento finalizar este texto pela terceira vez -, marca o segundo aniversário do meu filho Francisco. Mesmo sendo um pai ainda principiante, as paternidades ocupam um lugar central em minha vida há quase 20 anos, quando comecei a trabalhar com o tema sob uma perspectiva feminista e de equidade de gênero. Mas é obvio que algo mudou profundamente com a chegada de Francisco. E ao mesmo tempo, nada mudou.

Nas coisas que me compõem enquanto indivíduo e cidadão, sinto que continuo o mesmo. Tenho os mesmos valores e a mesma forma de enxergar o mundo. Mas o “tempo” mudou. E não me refiro apenas ao tempo livre que sumiu para aparentemente nunca mais voltar. Me refiro principalmente a como percebo e como “vivo” o tempo. Sei que isso está um pouco confuso, mas vou tentar explicar…

Desde as 22:40 do dia 31 de julho de 2017 eu tenho consciência de ter os pés mais fincados no presente do que nunca: eu estou aqui. Ao mesmo tempo, a paternidade tem me levado a constantes reflexões sobre a minha infância: eu estou nas minhas memórias. Por fim, com certa frequência me imagino no aniversário de 10 anos de Francisco, quando, se tudo der certo, eu terei 50 anos; ou nos seus 20 anos, quando já serei um idoso: eu fantasio e desejo um futuro.

Me parece que com o nascimento dele, o tempo nasceu em mim e assim a seguinte indagação vira e mexe tem se apresentado: Como usar hoje o que aprendi ontem para que o meu filho tenha o melhor amanhã possível?

Sinto muito se desaponto pela falta de originalidade, afinal, essa deve ser uma das mais batidas (e difíceis) perguntas enfrentadas por mães e pais. A novidade – na verdade, não tão nova assim – é o crescente engajamento de governos, legisladores/as, empresas e academia com uma questão muito similar, o desenvolvimento e a promoção dos direitos das crianças durante a primeira infância.

De certa forma, esse engajamento espelha os medos e os sonhos das famílias, só que tendo como foco o contexto das políticas públicas, e tendo como base o conhecimento científico, que como tudo, também é marcado pelo tempo. Por exemplo, muito antes da existência de tecnologias que conseguissem demonstrar a complexa e super acelerada interação de conexões neurais que ocorre durante o início da vida, o pediatra e psicanalista infantil Donald Winnicott já falava: “A saúde da pessoa crescida foi estabelecida no decorrer da infância, mas os alicerces da saúde do ser humano são lançados por você, nas primeiras semanas ou meses de vida do bebê. (…) Você está alicerçando as bases da saúde de uma pessoa que será um membro da nossa sociedade. É algo que vale a pena.” (1)

Além de demonstrar que o reconhecimento sobre a importância dessa fase da vida não vem de hoje, esse pequeno trecho de “A criança e o seu mundo”, escrito em 1957, também nos ajuda a introduzir a derradeira palavra do título deste texto, “movimento”.

O pronome “você”, utilizado por Winnicott duas vezes no singular, se refere obviamente às mães/cuidadoras, mas eu estou certo de que se vivo fosse, a sua obra teria permanecido em movimento e hoje abordaria com mais profundidade e contundência o papel dos pais nesse processo.

Após muitos anos de trabalho, as reflexões e as ações voltadas às paternidades e à primeira infância parecem hoje gozar de certo reconhecimento no Brasil. No entanto, ainda há muito a avançar, o que virou  um desafio ainda maior tendo em vista a onda de retrocesso e conservadorismo que tem varrido o país e atacado as bases de nosso já frágil estado de bem estar social. Nesse cenário, permanecer em movimento e aprofundar as reflexões e as parcerias entre esses dois campos de conhecimento se torna mais importante do que nunca.

Por exemplo, com frequência penso sobre os possíveis desdobramentos de se elevar o desenvolvimento na primeira infância a um patamar de prioridade nacional em um país tão machista e com tamanha desigualdade de gênero como o Brasil. Ao meu ver, o crescimento dessa pauta dissociado de políticas de equidade de gênero pode levar a uma responsabilização e culpabilização ainda mais acentuada das mães/cuidadoras. Assim, as reflexões e iniciativas voltadas à divisão das tarefas de cuidado por parte dos homens (além das imprescindíveis ações no campo do feminismo e direitos das mulheres) se tornam estratégicas e necessárias ao campo da primeira infância.

Por outro lado, cada vez mais tenho questionado se a tal paternidade (e maternidade) “envolvida” é para quem quer, ou para quem pode. Ou seja, como cobrar um maior envolvimento de pais e mães sem fazer uma profunda análise das desigualdades de classe (e raça) que assolam o nosso país e sem exigir que o Estado faça a sua parte, que é garantir que pais e mães tenham acesso a condições minimamente adequadas para cuidar de seus filhos e filhas. Eis que o conhecimento acumulado pelo campo da primeira infância pode contribuir sobremaneira à pauta das paternidades, já que quando posto em prática de forma adequada ele implica necessariamente em esforços amplos e coordenados de políticas públicas de saúde, educação, moradia, assistência social, segurança etc.

Há outros caminhos possíveis para estreitar a relação entre as paternidades e a primeira infância, no entanto, este texto já se aproxima das 1000 palavras e antes de finalizá-lo eu preciso ao menos mencionar que ele me foi pedido tendo em vista a aproximação do dia dos pais. Eu confesso que não sei ao certo por que ele tomou esse caminho de reflexões sobre tempo e movimento, mas imagino que tenha a ver com o fato de não estar sendo fácil viver com os pés fincados no presente no Brasil de agosto de 2019. Felizmente, tanto a paternidade como a primeira infância nos remetem à necessidade de fantasiar e desejar um futuro melhor e é isso o que espero para todos os pais e todas as mães brasileiros.
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(1)  D.W. Winnicott. A criança e o seu mundo. 1957.

Daniel Costa Lima – Pai de Francisco, psicólogo, mestre em saúde pública e consultor independente no campo de gênero, masculinidades, paternidade e cuidado e violência baseada em gênero. Daniel escreve sobre paternidades e equidade de gênero no Portal Vermelho.

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