01 de julho de 2013

Mordidas na primeira infância

*Denise Argolo Estill – Psicóloga. Pós-graduada em Psicopedagogia com formação no Magistério. Coordenadora da área científica do Entre Laços – Núcleo de Atenção à Primeira Infância.

O tema “MORDIDAS”, quando engloba a faixa etária da primeira infância (0 a 3 anos), desperta nos adultos inúmeros sentimentos, por envolver muitas conquistas e uma série de desafios. A criança está sendo apresentada ao mundo e no começo da sua escolaridade vai viver de forma coletiva pela primeira vez. Cabe ao educador introduzi-la na vida em grupo e guiá-la na forma de se relacionar e se comunicar com seus pares. Por outro lado, seus pais, repletos de expectativas, buscam acertar na orientação aos filhos nesta etapa. Esta tarefa está repleta de obstáculos. A criança traz consigo características que amadurecem a partir de seu desenvolvimento natural e da interferência com o meio social. Este amadurecimento irá permitir que seu potencial para relacionar-se com outras crianças da mesma faixa etária se amplie, estimulado por estar num ambiente coletivo. Oferecer um ambiente favorável ao desenvolvimento infantil é responsabilidade da instituição e da família e para a realização desta tarefa se faz necessário o conhecimento das características desta fase, assim como um repertório variado de atividades que a atenda.

Vamos conhecer melhor esta criança, através dos olhares de Piaget, Freud e Winnicott e a partir desses olhares, pensarmos na atuação com a criança de forma a propiciar um ambiente “suficientemente bom” para o desenvolvimento infantil.

Jean Piaget 1886/1980 – Psicólogo

Pesquisador com foco na infância estudou o processo do pensar infantil e seu desenvolvimento, lógico e racional.

Piaget pesquisou o desenvolvimento da inteligência, encontrando períodos distintos:

· Período sensório-motor (0 – 2 anos);
· Período pré-operatório (2 – 7 anos);
· Período das operações concretas (7 – 11 anos);
· Período das operações abstratas ou formais (12 anos em diante).
Vamos conhecer mais de perto o período sensório-motor e o início do pré-operatório.

Período sensório-motor

Período sensório-motor é o compreendido entre o nascimento e os dois anos de idade. Este período é marcado por um extraordinário desenvolvimento mental. As conquistas se dão através da percepção e dos movimentos. Inicia-se com o exercício dos aparelhos reflexos, passando pela organização das percepções e hábitos, chegando à inteligência sensório-motora. O desenvolvimento se dá através de ações: sucção, virar a cabeça, sorrir, reconhecer pessoas, pegar o que vê, manipular objetos, pegar uma vareta para puxar outro objeto. Não há uma consciência do eu, o que existe é uma experiência produzida pela atividade, ou seja, não há uma reflexão antes de agir.

A criança, durante estes dois primeiros anos de vida, inicia o desenvolvimento de quatro processos fundamentais: a construção das categorias de objetos, espaço, tempo e causalidade.

A construção da categoria de objeto pode ser descrita como o início da separação entre o “eu” e o “não eu”. No início da vida o bebê tem a ilusão de que tudo que o rodeia é ele mesmo, não há diferenciação. O seio, o leite, o colo, a água, a coberta e tudo mais pertencem ao seu corpo e surgem na medida da sua necessidade. As vivências inevitáveis de frustração, que o levam a sentir a falta (frio, fome, dor) e o desenvolvimento natural de sua percepção de si mesmo, levam-no a construir, gradativamente, a percepção da diferenciação entre ele e o resto do mundo (os objetos).

Construir a categoria de espaço está intimamente ligado à construção da categoria de objeto, pois este objeto ocupa um lugar – o espaço.

A construção da noção de tempo na criança começa com a experiência da relação de causalidade: determinada ação, causa;determinado resultado, consequência. Portanto, existe uma ação antes, que determina um resultado depois: o bebê puxa uma corda para balançar um brinquedo; o bebê para de chorar quando ouve uma porta se abrir. Aos poucos estas relações vão ampliando-se, ele pega um banquinho para subir para alcançar um objeto desejado – puxar, aproximar, pegar.

Uma ação causa a outra, por isto existe um antes e um depois, por exemplo, afastar um objeto que encobre para poder pegá-lo. Esta fase, final do primeiro ano de vida, é anterior à construção do pensamento simbólico.

Na medida em que vai construindo as representações do mundo, o bebê vai podendo lembrar e localizar os fatos, pessoas, objetos e situações no tempo. Primeiro são fatos isolados, imediatos para depois ir englobando o passado e uma projeção do futuro, mais adiante. Assim ela vai ampliando e incorporando mais detalhes ao seu universo, iniciando suas narrativas pessoais e entendendo as narrativas alheias.

As principais características observáveis durante essa fase são: a exploração manual e visual do ambiente; a experiência obtida com ações (a imitação); a inteligência prática (através de ações); ações como agarrar, sugar, atirar, bater; chutar e morder; as ações ocorrem antes do pensamento; a centralização se dá no próprio corpo; constitui-se a noção de permanência do objeto.

Período pré-operatório

Surge a linguagem, em decorrência da possibilidade de simbolização. A criança pode expressar-se afetiva e intelectualmente com mais ferramentas. Faz uso de narrativas, usando o passado, presente e futuro.

Entre 3 e 6 anos, mais ou menos, os antigos esquemas de ação são transformados em esquemas representativos, isto é, os objetos sofrem não só a ação física da criança, mas também a ação mental. Uma caixa se transforma numa casa, um graveto numa varinha de condão.

Além disso, a linguagem oral progride muito, tornando possível empregar expressões socialmente convencionadas e não só expressões muito particulares (a criança vai substituindo, por exemplo, a palavra “dedé” por mamadeira).

O faz-de-conta é uma atividade intensa. A criança assume o papel de pai, mãe, professora e super-heróis. Nesta dinâmica é possível vivenciar situações prazerosas e dar soluções para conflitos da vida real.

Com o advento da linguagem oral, a criança se expressa com maior competência, ampliando-se assim sua rede social. Faz-se melhor entendida e entende melhor o outro. Nestas trocas vai aprimorando-se nas relações com seus pares.

Sigmund Freud (1856/1939) médico, neurologista/psicanalista

Freud é conhecido como “o pai da psicanálise”. Na teoria psicanalítica o papel do inconsciente é determinante no resultado das nossas ações no mundo. O inconsciente vai sendo alimentado no decorrer da vida por experiências, sentimentos, impressões que a realidade ou mesmo a nossa fantasia produz em nós mesmos, mas, das quais nem sempre temos consciência. Esse material “represado” procura formas de se expressar e se revela em nossas atitudes, sonhos, reações. Naturalmente procuramos repetir as experiências que nos trazem prazer. Esse prazer pode ter sua origem em uma experiência real, como comer algo que agrade ao nosso paladar ou o prazer pode ser originário de lembranças e sensações que deixaram uma marca positiva no nosso inconsciente, um embalo, um cheiro que nos deixa uma memória de uma sensação prazerosa.

A criança ao nascer já registra a sensação de prazer e busca revivê-la em suas experiências cotidianas.

Freud, ao estudar o inconsciente, organizou uma série de conceitos para descrever sua teoria. Alguns desses conceitos nos auxiliam a entender, entre outras  questões, as que envolvem a manifestação das mordidas. São eles: desenvolvimento psicossexual, sexualidade e agressividade.

Desenvolvimento psicossexual

Nos primeiros tempos de vida o indivíduo já encontra prazer no próprio corpo, a função sexual está ligada à sobrevivência. O corpo é fonte de prazer e satisfação, destacando-se nele algumas zonas erógenas. Ocorre também um desenvolvimento progressivo da sexualidade e este desenvolvimento está ligado com as diferentes formas de gratificações e de relações objetais.

Segundo Freud, o desenvolvimento psicossexual se organiza da seguinte forma:

· Fase oral: 0 a 18 meses, em que a zona erógena é a boca e o prazer está ligado à alimentação; nesta fase o objetivo da satisfação sexual consiste na incorporação do objeto e estimulação da zona oral;
· Fase anal: 18 meses a 3 anos e meio aproximadamente, quando a zona de erotização é no ânus, a relação com os objetos está ligada ao controle dos esfíncteres, o controle se torna uma nova fonte de prazer;
· Fase fálica: aproximadamente de 3 a 6 anos. Nesta fase o órgão sexual é a zona erógena. Nos meninos esta fase se caracteriza por um interesse narcísico pelo próprio pênis e o medo da castração, em contrapartida a menina descobre em si ausência do pênis e o deseja ter. Neste período ocorre o complexo de Édipo, cuja elaboração e declínio produz consequências fundamentais para a estruturação do psiquismo;
· Fase da latência: 6 aos 12 anos em que ocorre uma diminuição das atividades sexuais, que vai até a puberdade.
Na adolescência atingi-se a última fase, a fase genital, nela o objeto sexual é o outro.

Sexualidade
Na Psicanálise, a sexualidade não se limita apenas à atividade e ao prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital. Sexualidade corresponde a uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância, que proporcionam um prazer sentido pelas diferentes partes do corpo.

Agressividade
Tendência ou conjunto de tendências que se manifestam através de comportamentos reais ou “imaginários”. A Psicanálise atribuiu uma importância crescente à agressividade, mostrando-a existir desde cedo no desenvolvimento do indivíduo, estando muito próxima às manifestações da sexualidade.

Donald Woods Winnicott (1896/1971) – pediatra e psicanalista inglês

Segundo Winnicott, cada ser humano traz um potencial inato para amadurecer, para se integrar; porém, o fato de essa tendência ser inata não garante que ela realmente vá ocorrer.

Isso dependerá de um ambiente facilitador que forneça cuidados suficientemente bons, sendo que, no início, esse ambiente é representado pela mãe/cuidador.

É importante ressaltar que esses cuidados dependem da necessidade de cada criança, pois cada ser humano responderá ao ambiente de forma própria, apresentando, a cada momento, condições, potencialidades e dificuldades diferentes.

“Amor e ódio constituem os dois principais elementos a partir dos quais se constroem as relações humanas. Mas amor e ódio envolvem agressividade. Por outro lado, a agressão pode ser um sintoma de medo”. (D. W. Winnicott)

“De todas as tendências humanas, a agressividade, em especial, é escondida, disfarçada, desviada, atribuída a agentes externos, e quando se manifesta é sempre uma tarefa difícil identificar suas origens” (D. W. Winnicott).

A partir da agressividade podemos:
· Nos alimentar;
· Nos reproduzir;
· Buscar conhecimento;
· Nos desenvolver.
Nos aspectos citados acima estamos falando de uma agressividade que nos impulsiona a crescer!

A raiz da manifestação da agressividade é sempre originária de energias maldirecionadas?
De onde vem a necessidade de morder?
“… O que logo será comportamento agressivo não passa, no início de um simples impulso que leva a um movimento e aos primeiros passos de uma exploração. A agressão está sempre ligada, desta maneira, ao estabelecimento de uma distinção entre o que é e o que não é o eu” (D. W. Winnicott).

E a mordida? Como pode ser explicada à luz de tantas teorias?

· A mordida é um comportamento esperado em crianças na faixa dos 2 anos.
· Sem dúvida, é um comportamento agressivo.
· Agressão que machuca e intimida, porém pode ser entendida também como agressivo, no sentido que permite uma ação de exploração, reconhecimento, incorporação e experimentação.

Ao derrubar uma torre, rasgar papéis, espirrar água durante o banho, a criança tem a oportunidade de expressar sua força e impulso agressivo. Nestas ocasiões, ela pode estar vivendo internamente fantasias de destruição, porém, essas manifestações por serem aceitas socialmente não trazem maiores consequências e permitem a criança expressar de forma organizada conteúdos de suas fantasias agressivas.

Ao oferecermos às crianças situações em que a agressividade pode ser manifestada em condições favoráveis, permitimos a elas que não se desorganizem emocionalmente. Mantemos a integridade delas e do ambiente.

A agressividade expressa por uma criança, que dificulta seriamente a rotina em seu entorno, é quase sempre a dramatização da realidade interior desta criança que é ruim demais para ser tolerada como tal.

A vivência de uma frustração ou raiva pode desencadear reações controláveis ou incontroláveis, dependendo do nível interno de tensões existentes na fantasia inconsciente.

O adulto tem o papel primordial de impedir que a manifestação agressiva fuja ao controle, garantindo, entretanto, que ela possa ser expressa sem causar danos à própria criança e ao seu ambiente.

Ao aceitarmos as manifestações de agressividade e pudermos dar sentido a este comportamento, devolvendo para a criança a possibilidade de reparação e restituição do controle, estaremos contribuindo para a constituição de um ser produtivo e consciente.

E os cuidados dados à criança, o que tem a ver com tudo isso?

As atividades de refeição, higiene, brincadeiras e relaxamento podem e devem ser exploradas no sentido de ampliar o repertório das crianças.
Este repertório irá se enriquecer na medida em que, ao cuidar, invista-se na qualidade dessa interação.

A qualidade se apoia na possibilidade de oferecermos um ambiente organizado, atenção individualizada e riqueza nesta relação.

O investimento afetivo que destinamos nas diferentes atividades irá confirmar para a criança o lugar que ela ocupa, sua importância e direito de ser atendida em suas necessidades.

Demonstramos afeto ao oferecer um ambiente cuidado, um planejamento do dia feito com antecedência. A aprendizagem é movida pelo afeto, pela identificação da criança com seu cuidador.

A construção das práticas sociais é feita no dia-a-dia. É uma construção demorada e repetitiva. E essa construção a levará a dar sentido aos significados de sua cultura.

Frequentemente uma resposta mais lenta ou sem envolvimento por parte da criança é interpretada como uma dificuldade de ordem cognitiva. Porém a criança precisa estar organizada emocionalmente para produzir. Conhecer esta criança, sua história e o momento que ela está vivendo são ferramentas úteis para interagir com a criança e estimulá-la, conhecendo o seu limite e potencialidades.

O bebê se utiliza seu próprio corpo para aprender. Para que isso se realize é necessário que este bebê esteja em harmonia consigo mesmo e com o ambiente.
Esta harmonia proporciona que sua atenção se volte para a exploração de seus movimentos, reconhecendo suas destrezas e exercitando sua coordenação motora.

As brincadeiras e interações com os adultos são o cenário que favorece ao desenvolvimento de expressões e códigos de comunicação. Através das atividades de relaxamento, brincadeira e alimentação a criança adquire os símbolos e os significados da estrutura de comunicação de seu meio.

Uma rotina que atenda a criança favorece a autonomia e permite o movimento de reconhecimento do ambiente.

Isto ocorre pela possibilidade de familiarização do ambiente. A criança se sente segura para investir nas relações com os adultos e seus pares.

O adulto precisa estar presente. Porém nem sempre sua atuação se dará de forma direta. A criança precisa do apoio de seu cuidador, mas precisa também descobrir suas possibilidades num movimento mais solitário (de vez em quando). Para que isso ocorra com segurança, esse ambiente precisou dos cuidados do adulto, no sentido de sua organização e estrutura.

A ausência do adulto de referência pode gerar na criança pequena um sentimento de desamparo, as situações novas precisam ser introduzidas através do cuidador de referência. Caso contrário, podem ocasionar comportamentos gerados pela tensão e impulsividade.

Essas atitudes desorganizadas podem ser frequentes na criança se o ambiente não lhe assegurar o bem-estar. A criança ainda se comunica com dificuldade, não raro, não é entendida pelo adulto, e é frequente que se sinta frustrada.

A rotina bem estruturada e atividades que tenham uma sequência que a criança possa antecipar o que está por vir são fatores que favorecemo “domínio” da criança sobre o seu ambiente, amenizando o sentimento de frustração e ansiedade.

Impacto das mordidas

Ao se deparar com situações de mordidas, principalmente se forem recorrentes, os adultos podem se sentir expostos e impotentes. O enfrentamento com as crianças, confortá-las, cuidar das lesões e dos sentimentos, todos esses aspectos envolvem cobranças pessoais. Como enfrentar tantas animosidades estando frágil, impotente?

Em primeiro lugar aceitar as mordidas como uma manifestação natural característica da faixa etária.

Mordidas, arranhões, empurrões, tapas

O que os adultos podem fazer para intervir e minimizar?
1. Atitudes de prevenção, atenção redobrada no sentido de impedir situações que levem a criança a se machucar, agredir ou ser agredida por outra criança.
2. A presença do adulto com a criança deve ser constante. As crianças pequenas se desorganizam muito rápido quando se percebem sozinhas.
3. Aceitar a existência de conflitos entre as crianças como uma característica natural da idade.
4. Estimular através de modelo de intervenção, formas verbais de resolução do conflito.
5. Valorizar a diversidade de linguagens – gestos, palavras, sons, desenhos, escrita – como instrumentos para a criança pensar o mundo e a si mesma.
6. Lembrar que as brincadeiras são poderosas ferramentas para a criança se expressar e organizar seu mundo interno.
7. Reservar longos períodos diários para que as crianças brinquem.

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