05 de novembro de 2015

Em Salvador, crianças do Calabar gravam música em campanha contra a violência

Crianças-do-Calabar-gravam-música-de-campanha-contra-violência-622x203A campanha de combate á violência contra crianças do projeto Infâncias em Rede está tomando forma. Pensada e lançada pelos meninos e meninas da comunidade do Calabar, a campanha tem como foco o direito de serem educados livres de castigos físicos e humilhantes, garantido pela Lei Menino Bernardo (Lei 13.010/2014). O debate sobre o tema foi iniciado em 2014, orientado pelos educadores do projeto que coletaram palavras, que foram transformadas em música. No dia 14 de outubro, 10 crianças do Calabar foram levadas para o estúdio Attitude, no bairro do Rio Vermelho, onde gravaram a música O Menino Bernardo, primeira peça da campanha.

“Não pode bater na criança / Tem que ter mais tolerância / se você presenciar a criança apanhar / Disk 100”, diz uma das estrofes da canção. Segundo Fernanda Pondé, psicóloga responsável pela mobilização do Grupo de Crianças do Calabar, a música surgiu em substituição à ideia inicial para a campanha de produção de umapeça de teatro. “O texto da peça foi construído, mas sentimos que o teatro exigiria muitas habilidades que não tínhamos, ainda. A música foi uma ótima saída para tornar a campanha mais viável. Ela surgiu no final do ano passado”, contou.

A ideia da música foi reforçada com a chegada do educador e músico, Juracy do Amor, ao projeto. “Eles já vinham no processo de construção da peça de teatro, foi quando cheguei com o violão e as brincadeiras com música. Aí pintou a Lei do Menino Bernardo e a gente começou a discutir. Começamos perguntado o que a criança tem direito. Eles começaram a dizer que a criança tinha dinheiro a brincar no parque, de ir para a escola, merecer amor, beijinho e carinho. Nós fomos conduzindo para que eles soltassem algumas palavras, as quais foram sendo colocadas dentro de um formato, que acabou por ficar muito interessante”, relatou.

Ele conta ainda que quase todos colaboraram de alguma forma com a letra, participaram da gravação e que o debate sobre os direitos das crianças estendeu-se a direitos que elas nem tinham ideia de possuir.  “Aproveitamos para explicar-lhes sobre o direito autoral. E eles agora sabem que a canção é deles também, e que para ser aproveitada como divulgação da campanha, eles tem que ceder o direito de uso”, conta.

Participação

Além de amor, beijinho e carinho, a música lista outros “direitos” das crianças. Luane Santos, 11 anos, por exemplo, sugeriu o direito de estudar. “Coloquei a parte que diz ABC, porque os meninos estavam falando em estudar, em ler, em aprender, daí eu falei ABC”, conta. Para ela o resultado da música “foi legal”, apesar das dificuldades no começo.  “Foi difícil porque a gente não queria falar, porque tinha vergonha. O professor foi falando até que a gente se soltou e conseguiu se expressar”, explica.

Sua expectativa é que a música se transforme em uma importante peça da campanha “para não bater na criança”. Ela espera que a música Menino Bernardo ultrapasse as fronteiras da comunidade do Calabar. “Espero que tenha pelos menos 20 mil views (visualizações) no Youtube”, projetou. Já Mônica Barbosa Santos, 11 anos, que começou com nove anos no projeto, não lembra que parte colocou na música.  “Mas gosto mais da parte que fala da Lei Menino Bernardo, porque é a parte que fala da proteção das crianças”, disse.

Conscientização

O projeto Infâncias em Rede ira completar três anos pondo em prática a proposta de fomento ao brincar livre e ocupação do espaço público da comunidade, que evoluiu para a formação de um grupo de crianças que hoje discute sobre os seus direitos e elabora produtos para mobilizar os moradores sobre os temas debatidos. A princípio estabeleceu-se uma relação de escuta e participação com as crianças, que levou à revitalização de duas praças da comunidade e à elaboração de uma peça de teatro sobre a Lei Menino Bernardo, a qual originou a música. “Começamos brincando na praça, garantindo o direito a brincar. A partir daí, depois de nos conhecermos melhor, conhecermos as pessoas da comunidade, começamos a convidar as crianças para pensar temas como o que é ser criança, o que ser uma criança do Calabar; a questionar se as crianças sofrem violência, se apanham dos pais”, conta a psicóloga Fernanda Pondé.

O tema da violência, segundo Pondé, surgiu de uma conversa sobre a história do Calabar. “Chegamos à informação que o Calabar tinha sido um quilombo e que seus habitantes eram ex escravos. Daí, falamos sobre a escravidão, sobre o fato de que esses escravos terem sido expostos a cruéis castigos físicos, até que chegamos à questão da violência em suas vidas, de como era difícil ver alguém apanhando e acabamos na Lei Menino Bernardo.”

Ela relata que muitos já conheciam a história do menino Bernardo, mas que o trabalho de conscientização, tanto dos meninos como da comunidade, que é a raiz da campanha, tem sido um caminho longo de transformação. “Eles começaram a enxergar a violência ao seu redor, o que antes não acontecia e a perceber a violência está em suas ações, nos hábitos. E essa violência, que é parte das relações, vem diminuindo, o que demonstra o quanto o projeto já alcançou resultados.”

Esses resultados têm alcançado também os adultos do Calabar. “Percebe-se que as famílias parceiras também começam a questionar suas formas de agir com as crianças. Uma mãe um dia me chamou para explicar porque bateu na filha. Ela fez questão de vir me contar, o que demonstra que ela está refletindo sobre o tema e mostra que a transformação vem acontecendo, mas, como não podia deixar de ser, de uma maneira lenta, pois estamos falando de hábitos, de uma herança cultural”.

Projeto

O projeto Infâncias em Rede trabalha para a articulação de crianças em rede, visando a participação cidadã. Como recorte, estamos trabalhando com crianças em Salvador (Calabar) e no Rio de Janeiro, (em Pedra de Guaratiba), junto com a fundação xuxa/Rede +Criança. O trabalho propõe ação direta com as crianças dessas duas comunidades, além de uma militância em prol do direito à participação em nível nacional e internacional, por meio do GT participação infantil (RNPI) e CT direitos da criança, Comitê Vozes das Crianças (Voices of Children, VoC), parte do World Forum (Forum Mundial pela educação e cuidados na primeira infância).

(Informações e foto: Avante)

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