01 de agosto de 2017

Falta de avaliações consistentes põe em risco a efetividade de programas de visitação domiciliar

crédito: Filme O Começo da Vida

Flavio Cunha é economista e um apaixonado pela primeira infância. Ele é autor desta frase, uma das mais emblemáticas do filme O Começo da Vida: “O afeto é a fita isolante da ligação entre os neurônios”. Por isso, o convidamos para falar sobre qual a importância dos programas de visitação domiciliar para fortalecer as relações entre adultos e crianças e como tudo isso pode impactar positivamente a sociedade. Confira!

Fundação Maria Cecilia – Flavio, como você analisa os programas de visitação domiciliar e suas consequências em aspectos como parentalidade, violência contra a criança, morte na infância, desenvolvimento socioeconômico de uma comunidade, dentre outros pontos, que influenciam a vida do indivíduo e da coletividade?
Flavio Cunha – Os programas de visitação domiciliar são heterogêneos nos objetivos, públicos-alvo e impactos. Infelizmente, muitos deles não foram avaliados de uma maneira robusta, então é difícil afirmar quais os efeitos. Porém, alguns programas tiveram avaliação de alta qualidade por muitos anos. Por exemplo, o Programa “Nurse Family Partnership” atende mães adolescentes em sua primeira gravidez. As visitas ocorrem a partir do segundo trimestre da gestação e continuam até a criança completar dois anos de idade. Mais de 20 artigos foram publicados a respeito deste programa. Existe alguma evidência de que ele beneficiou a saúde da criança e da mãe. Porém, os resultados não são necessariamente consistentes para se ter certeza definitiva sobre os impactos.

Fundação Maria Cecilia – No que diz respeito ao desenvolvimento socioeconômico, há algum programa de visitação domiciliar que tenha promovido melhoras substanciais?
FC – O Programa de Suplementação Nutricional e Estimulação Cognitiva da Jamaica impactou positivamente a escolaridade, participação no mercado de trabalho e salário. Estas variáveis foram mensuradas 20 anos após a implementação da política, ou seja, teve impacto de longo prazo. Há, também, programas de visitação domiciliar que não têm impacto no curto ou longo prazo. O Programa da Jamaica foi recentemente replicado na Colômbia e será implementado na Índia e na China. Eu acredito que em pouco tempo teremos dados sobre o impacto do programa em outros contextos.

Fundação Maria Cecilia – Em muitos casos, ainda existe uma carência de avaliações que, por não serem feitas com o rigor necessário, impedem que as iniciativas sejam analisadas como de impacto positivo ou não?
FC – Muitos programas nunca foram objeto de uma avaliação de alta qualidade. Por alta qualidade, eu quero dizer uma avaliação de impacto na qual existam grupos de tratamento e de controle bem definidos e que sejam comparáveis, com instrumentos de coleta de dados apropriados e recrutamento de participantes, adequados aos objetivos do programa. Então, não sabemos quais os custos e se eles geram algum benefício para as famílias. É importante avaliar, já que alguns programas que foram avaliados também demonstraram que eram prejudiciais a famílias (ou crianças). Para ajudar estados e ONGs interessados nesses programas, a administração do ex- Presidente Barack Obama criou um website centralizando as informações sobre os muitos tipos de programas de visitação domiciliar implementados nos EUA e quais seus impactos. Infelizmente, uma parte deles não gera resultados consistentes sobre importantes dimensões do desenvolvimento infantil. Para alguns programas, a evidência é mista: às vezes positiva, às vezes não. No entanto, outros apresentam impactos consistentes em algumas dimensões do desenvolvimento infantil. A grande lição do website, para mim, é que não tem como garantir que uma política pública necessariamente terá o impacto que se espera. É preciso avaliar sempre.

Fundação Maria Cecilia – Na sua opinião, quais são as principais premissas para que um programa de visitação domiciliar possa dar certo e ser escalado?
FC – Primeiro, é necessário compreender quais as dificuldades que o público-alvo enfrenta. Muitas vezes, o currículo e a instrução do programa são rígidos e ortogonais às necessidades de apoio das famílias. Por exemplo, a família pode ter problemas com o comportamento do filho, mas o programa não oferece qualquer estratégia que os pais possam utilizar para melhorar esse aspecto do desenvolvimento infantil. Vários programas de visitação domiciliar, nos EUA, sofrem com altos níveis de rejeição e de desistência ao longo do programa. A qualidade do treinamento e da preparação do visitador também é um fator a ser levado em conta. Não é somente saber o currículo. É necessário que o visitador estabeleça uma relação de confiança com os pais.

Segundo, a visitação domiciliar não é necessariamente a melhor maneira de interagir com os pais. Hoje em dia, todos os adultos na família (pais, mães) trabalham durante o dia. Isto dificulta a participação, se os programas forem restritos aos dias da semana e aos horários de trabalho. Então, programas devem estar preparados para ajudar famílias nos horários em que elas estão disponíveis.

Terceiro, existe um grande problema de escala. Infelizmente, o número de famílias que um visitador domiciliar pode ajudar depende da duração e frequência das visitas. Isto acaba influenciando o quarto ponto: o custo. Estamos avaliando outro modelo em que os pais são atendidos em grupos e se deslocam ao local dos encontros. Até agora, sabemos que os custos desse tipo de programas são muito inferiores (apenas 10% do custo de um programa de visitação domiciliar típico), mas, ainda não temos dados para avaliar os benefícios desses programas.

Fundação Maria Cecilia – O fato de os programas de visitação familiar serem, a priori, protagonizados pela área de Saúde, tem algum sentido ou é uma “tradição” que pode ou deve ser quebrada, envolvendo a liderança de outras áreas de atendimento a famílias e crianças?
FC – Pode existir complementariedade entre as áreas. Ou não. Depende do objetivo. Por exemplo, se o problema a ser atacado é relacionado à saúde da criança ou da mãe, faz sentido que o programa seja executado pela área da saúde. Outro exemplo é a família que tenha uma criança com um ano e meio de idade sendo que a mãe está no primeiro trimestre da segunda gravidez. Neste caso, ela deve receber duas mensagens: (a) desenvolvimento cognitivo e socioemocional do primeiro filho e (b) como assegurar uma gestação saudável que reduza prematuridade e mortalidade infantil. Neste caso, seria natural envolver outras áreas. Novamente, a formatação do programa depende do problema a ser atacado, o público-alvo e considerações logísticas.

Flávio Cunha é economista, professor da Rice University (EUA).

(Fonte: Fundação Maria Cecília Souto Vidigal – http://desenvolvimento-infantil.blog.br)

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