08 de junho de 2017

Mães em situação de prisão em Recife, artigo por Valéria Aguiar, do CPPL

Foto ilustrativa, de mãe e bebê em presídio do Ceará. Fonte: IFAN

Trago aqui o relato de uma experiência que sendo única e marcante, produz em mim ainda seus efeitos.Escrevo como uma forma de partilhar,  apostar nos efeitos de mobilização que uma fala pode desdobrar, mesmo que longínquos, e  de elaborar subjetivamente.  Ao final, vou situar vocês acerca do contexto onde essa experiência se deu e dizer do meu lugar.

À chegada na Unidade Prisional Feminina, um primeiro impacto: teria que entrar só portando a carteira de identidade e passar, mesmo autorizada pelo juiz e Defensoria Pública do estado, pela revista.Já conhecia instituições de internamento compulsório: quando estudante de psicologia, vivia metida em clínicas e hospitais psiquiátricos, na época, inquieta por conhecer  contingências e particularidades dos sujeitos humanos.Sem carregar nada comigo, de mãos vazias, literalmente, seguia numa nova interrogação sobre esse mundo apartado, onde eu iria encontrar e estar com mulheres gestantes, mães e bebês.
Primeiro encontro com uma assistente social, a qual me anunciou que era dia de partida de um bebê que havia completado seis meses e que portanto, iria ser separado da mãe.Disse que o trabalho era difícil, mas que tudo era feito de maneira harmoniosa. Em seguida, encontro com a colega psicóloga: um turbilhão de angústias e preocupações: uma da mães cuja bebê vai estar completando 6 meses em algumas semanas, vinda do sertão, “sem família”, (pelo crime intra familiar cometido), tendo engravidado na prisão, vinha anunciando que não iria se separar da filha, que iria se suicidar, se a bebê lhe fosse “tomada”. A colega havia feito um relatório, solicitando “avaliação psiquiátrica”. Concordamos que a mãe e a bebê estão em risco, que era preciso partilhar com toda a equipe.
Essa unidade feminina tem um contingente próximo a 600 mulheres encarceradas, chamadas gentilmente de “educandas”.
Diferentemente dos homens, as mulheres encarceradas são pouco visitadas: raríssimas recebem visita de companheiros e algumas são abandonadas pelas famílias. Muitas mulheres “transgênero”: rapazes em meio às outras. As relações homoafetivas, bem visíveis, bem como os vários grupos que observavam de longe, no momento final, no pátio, com todos, inclusive a segurança armada (ao fundo).
As grávidas ficam separadas, assim como as que já tiveram bebê ficam, das demais. No momento, eram dez gestantes e seis mamães lactantes;os bebês ficam com elas até os seis meses exatos, quando ocorre a separação e o bebê é entregue a alguém “escolhido” pela mãe, se possível, ou…  Até esse momento mães e bebês ficaram “grudados” 24 horas. Elas ficam todas juntas com seus bebês: são solidárias, cuidando uma das outras; seguram e brincam com os outros bebês. Provavelmente isso explica a vivacidade dos bebês ali presentes: nenhum sinal de depressão ou qualquer outro transtorno psicológico do desenvolvimento precoce.
O berçário é formado por um conjunto de três celas,( quartos fechados), sem abertura para ventilação, com um pátio central, fechado com grade no teto.Diante  do enorme calor, que os ventiladores não dão conta, por vezes, dormem no chão do pátio. Nas celas cabem de três a seis berços e camas das mães.
Além da vivência de separação do bebê, a mãe sai daquele lugar mais protegido e volta ao difícil convívio com as demais mulheres. Quando  há condições favoráveis, o bebê é trazido de vinte em vinte dias para vê-la e passam parte do dia, juntos com quem ficou com a tutela.
Importante relatar que além da pintura apagada com motivos infantis nas paredes, nada sugere que se trata de um berçário. Não havia um único brinquedo: nem um chocalhinho,mordedor ou bichinho de pano; as mães achavam que não brincavam com eles, embora brinquem. Observação que nos leva a pensar que esses bebês não são olhados pelo entorno, pelos que estão no ambiente destas mães. (Bem sabemos o quanto abastecemos mães e bebês de objetos (lúdicos). Esses bebês ficam numa posição de invisibilidade, de espera, de uma inapreensível postergação, para se tornarem bebês, olhados, reconhecidos, “investidos”, após a saída da prisão!
Sempre nos causa perplexidade a existência de tais condições, quando buscamos reafirmar que criança é um sujeito de direitos desde o seu nascimento. Como podemos atuar para modificar essas realidades?!
No espaço de uma  Roda de Conversa, falamos brevemente, sobre a importância do vínculo materno, do brincar nos primeiros seis meses, da situação de separação e de como acompanhar o desenvolvimento.
Essa experiência foi oportunizada pela realização da Semana do Bebê, promovida pela UNICEF, com a participação e apoio da Defensoria Pública de PE, Rotary, Rede Primeira Infância de PE (REPI-PE), CPPL- Clínica, Ensino e Consultoria e Secretarias municipais e do estado de Saúde e Desenvolvimento Social. No tocante à Defensoria Pública do Estado, tratou-se também  de uma ação conjunta do projeto denominado: Projeto Filhas da Liberdade, o qual busca mobilização para a promoção e revisão para penas domiciliares para mães com bebês, tal qual preconizam as Regras de Bangkok, em sintonia com o ECA e o Marco Legal Primeira Infância.
(Valéria Aguiar, do CPPL – Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem – cppl.com.br)
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