29 de fevereiro de 2016
Por que as emissoras querem acabar com a Classificação Indicativa? Entrevista com Leopoldo Nogueira
Em nome da liberdade de expressão, emissoras não querem regras sobre os conteúdos a serem exibidos na TV. E não querem ser punidas caso veiculem conteúdos fora da faixa horária indicada pelo sistema de Classificação Indicativa. O julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, que pode acontecer a qualquer momento, sinaliza um retrocesso para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Afinal, por que precisamos da manutenção da Classificação Indicativa? Para falar sobre o tema, conversamos com o pedagogo Leopoldo Nogueira e Silva, Mestre em Educação e Comunicação pela UFSC e Doutorando em Educação e Infância pela mesma instituição. Criador do blogs Descobrincante, Leo também é integrante da Rede Brasileira Infância e Consumo e colabora ativamente para refletir sobre a influência dos meios de comunicação sobre crianças e adultos.
Por que precisamos da manutenção da Classificação Indicativa, com multas para as emissoras que veicularem conteúdo fora do horário adequado?
A pesquisa de opinião realizada pelo Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipea) em 2014 – O comportamento das crianças/adolescentes e dos pais/responsáveis em relação ao uso das mídias – “mostrou que 94% dos entrevistados consideram a política de classificação indicativa do governo federal importante ou muito importante, e 71% acham muito importante que as emissoras de TV aberta respeitem a vinculação horária.”
A Classificação Indicativa, definida pelos critérios do Ministério da Justiça, apenas “orienta” pais e responsáveis sobre o conteúdo inadequado às diversas faixas etárias. Logo, a percepção dos entrevistados denota uma preocupação frente aos abusos cometidos, em especial pelas emissoras de TV desrespeitando os direitos de crianças e adolescentes à programação de qualidade e adequada a estes.
São diversos os documentos internacionais e nacionais que propugnam a proteção, promoção e defesa dos direitos das crianças e adolescentes, bem como pesquisas, artigos, textos e campanhas que abordam que crianças e adolescentes não estão “preparados” para acessar determinados conteúdos que agridem sua dignidade humana.
As advertências e multas aplicadas aos desrespeitos e violações aos direitos da infância e juventude, perpetrados pelas emissoras de TV, são recursos necessários e indispensáveis para que as empresas produtoras e veiculadoras de conteúdo pautem suas ações na observância da ética dos direitos humanos inalienáveis e conquistados em séculos de luta.
Qual é a importância do sistema que define horário e faixa etária para os programas com base no conteúdo sexual, violência ou uso de drogas da programação?
Aqueles que assessoram, constroem e definem o sistema que rege os princípios que determinam a Classificação Indicativa são profissionais altamente qualificados para tal, secundados pela legislação vigente no que diz respeito aos direitos da infância e juventude, e as especificidades e fragilidades das crianças e adolescentes em suas fases de desenvolvimento psicológico, social, afetivo, emocional, mental e também espiritual. Desenvolvimento humano, enfim.
Historicamente, conteúdos que fazem apologia à sexualidade e erotização precoce, à violência, ao uso de drogas, tanto quanto ao consumismo, sexismo, racismo, preconceitos de toda ordem, intolerância religiosa e outras formas de opressão já são absurdamente veiculados no quadro de programação das emissoras dirigidas aos adultos. Por vários fatores envolvidos, pais e responsáveis necessariamente não acompanham e não orientam o que as crianças e adolescentes assistem na TV e em outras plataformas digitais.
No Brasil, só muito recentemente é que grupos de pesquisa acadêmica, ONGs e núcleos de estudos e secretarias de educação despertaram e desenvolvem ainda de forma incipiente a problematização dessas questões junto à comunidade escolar, promovendo ações e debates que visem à educação “para”, “com”, “através” e também “apesar” das mídias.
É extremamente urgente que as secretarias municipais e estaduais de educação, em articulação com o Ministério da Educação, promovam a reflexão, debate e conscientização sobre o tema da relação de professores e educandos com as mídias.
O sistema fere a liberdade de expressão das emissoras? É censura como dizem as emissoras?
Os direitos de uns encontram nos direitos de outros os limites para se fazer o que se quer quando os interesses mercadológicos são movidos dentro de uma lógica de opressão ou de observação dos direitos humanos.
Em especialmente em relação aos meios de comunicação esses limites são definidos numa ética universalmente aceita, que é a lógica, e a ética dos direitos humanos. Se não fosse essa lógica e ética dos direitos humanos as sociedades entrariam em caos.
No cenário econômico atual, e da lógica do mercado capitalista, se não fosse a legislação que promove a justiça social há muito estaríamos num estado de barbárie generalizada.
A lógica do mercado impõe a necessidade do lucro, em geral desmedido, e esperta e falaciosamente as empresas de comunicação lançam mão da “liberdade de expressão” para justificar um estado de coisas em que elas podem fazer o que bem querem, em detrimento dos direitos humanos, chamando de “censura” o que é nada mais nada menos que o limite aos interesses desmedidos ao lucro a qualquer custo.
Desde 2001, a pedido de empresários do setor de comunicação – que também conta com apoio de seus representantes e prepostos no Congresso Federal e STF – um lobby foi criado através de deputado do PTB, que entrou com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2404) a querer fazer revogar/impugnar o artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente que prevê multa para empresas que desrespeitem a Classificação Indicativa. Em princípio de 2016 a ADI se encontra para apreciação no STF.
Art. 254. Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação. Pena – multa de vinte a cem salários de referência; duplicada em caso de reincidência a autoridade judiciária poderá determinar a suspensão da programação da emissora por até dois dias.
O lobby quer fazer confundir “liberdade de expressão” com “censura prévia” intencionalmente, sabendo que desinformando a população de seus direitos conseguiria “ludibriar” o Estatuto da Criança e do Adolescente, como já faz descaradamente com os poucos cinco artigos do capítulo da Comunicação Social da Constituição Federal (Artigos 220 a 224) desde 1988, sem regulamentação no cenário nacional. Os empresários simplesmente não querem um “marco regulatório” que lhes freie a ambição desmedida ao lucro a qualquer custo.
Felizmente, a sociedade civil organizada tem agido muito bem para defender esses direitos humanos, lutando para que se cumpra o Artigo 227 da mesma Constituição Federal.
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
A questão maior a que isso se refere diz respeito à “política” de concessão para operação de TV e Rádio no país, cronicamente favorecendo interesses de uma elite interessada em não permitir a democratização dos meios de comunicação, a soberania comunicacional brasileira frente aos interesses internacionais do mercado, e o acesso da população aos meios de produção de conteúdos contrários à logica hegemônica do capitalismo desumanizante.
Em suma, os interesses dessa ADI 2404 dizem respeito ao favorecimento do que está posto como naturalizado, como se desrespeitar os direitos humanos também assim fosse natural à elite mundial e nacional proprietária dos meios de comunicação e sua ideologia globalizadora desumanizante.
Um tema muito frequente nas discussões da Rede Brasileira Infância e Consumo é a questão da adultização. Na sua opinião, qual a relação entre a adultização da infância e os conteúdos da mídia?
No interesse da exploração alheia, da desinformação e da manipulação de consciências para garantir o lucro desmedido, o mercado de consumo em sua lógica desumanizante está produzindo cada dia mais crianças adultizadas e adultos infantilizados, no sentido de “idiotização” das massas. As mídias e empresas de comunicação hegemônicas certamente que reforçam a que se aumente essa inversão de comportamento para promover a “idiotização” ou “vidiotização” das pessoas, reduzindo-as a meros consumidores de conteúdos e produtos que gerem lucros a empresários.
A Classificação Indicativa para conteúdos das TVs – enquanto em outras plataformas a veiculação de conteúdos é franqueada muitas vezes sem indicação classificatória – é apenas a ponta de um iceberg em um projeto público que, junto a outras questões, quer garantir condições de humanização das pessoas na vivência plena de seus direitos humanos.
Para saber mais:
Dissertação em que é abordada a Classificação Indicativa em relação a telejornais e programas noticiosos e crianças:
Telejornais e crianças no Brasil: a ponta do iceberg (2011)
Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/95260
Portaria No. 368, de 11 de fevereiro de 2014: regulamenta as disposições da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, da Lei no 10.359, de 27 de dezembro de 2001, e da Lei no 12.485 de 12 de setembro de 2011, relativas ao processo de classificação indicativa. Disponível emhttp://culturadigital.br/classind/files/2012/06/Portaria-MJ-368-14.pdf
Documentos nacionais e internacionais pela proteção dos direitos da infância:
Brasil promulga a Convenção Sobre os Direitos da Criança . ONU (1990),
Convenção sobre os Direitos das Crianças . ONU (1989),
Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU (1948)
Declaração Universal dos Direitos das Crianças . ONU (1959),
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
Estatuto da Criança e do Adolescente . ECA . Lei 8.069 . 13 de julho de 1990,
Plano Decenal dos Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes . 2011/2020,
Programa Nacional dos Direitos Humanos . PNDH 3 (2010),
Constituição Federal da República Federativa do Brasil, de 1988.
(Informações: Rede Brasileira Infância e Consumo, REBRINC)