25 de abril de 2017

Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil critica terceira versão da Base Nacional Comum Curricular

leitura e escrita na eiO projeto “Leitura e Escrita na Educação Infantil”, uma parceria firmada entre a Coordenação Geral de Educação Infantil do Ministério da Educação, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), divulgou uma nota com críticas a terceira versão da Base Nacional Comum Curricular sobre a temática da leitura e escrita na Educação Infantil. (Clique aqui para ver a íntegra da nota ou leia abaixo)

O texto é dirigido ao Conselho Nacional de Educação (CNE), e apresenta ponderações sobre as mudanças conceituais ao longo das diferentes versões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A carta enumera erros conceituais, ressalta supressões no texto da última versão, e pede que o CNE retome os espaços de discussão entre profissionais, gestores e interessados no tema da educação infantil para apoiar a elaboração da versão final da BNCC, que assegure aos autores das versões iniciais que estejam presentes e participem ativamente dos processos de discussão e deliberação. E sugere que o CNE solicite ao Ministério da Educação a metodologia empregada para considerar as contribuições presenciais e virtuais durante o processo de discussão da BNCC.

Veja abaixo a íntegra da nota:

Posicionamento do Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil em relação à terceira versão da BNCC 

O Projeto “Leitura e Escrita na Educação Infantil”, uma parceria firmada entre MEC/SEB/COEDI, UFMG, UFRJ e UNIRIO, vem a público apresentar algumas críticas à terceira versão da Base Nacional Comum Curricular – BNCC – no que tange à temática da leitura e da escrita na Educação Infantil. Estas críticas se baseiam nos estudos, seminários e pesquisas desenvolvidos ao longo de três anos de atividades acadêmicas que resultaram na elaboração de uma proposta de formação de professores de Educação Infantil. A proposta de formação se sustenta em material didático elaborado por mais de 25 autores dos campos da linguagem, leitura, escrita e Educação Infantil e na contribuição de cerca de cinquenta leitores críticos, professores das redes públicas, cujas vozes se fizeram ouvir nas inúmeras revisões ao longo da produção do material. O Projeto teve uma participação na segunda versão da BNCC, tendo em vista as necessárias articulações entre as políticas educacionais e a coerência conceitual às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – 2009, e as ações de formação de professores. Portanto, é a partir dos diálogos que se estabeleceram ao longo do processo de execução do Projeto que nós, coordenadoras, manifestamos nosso posicionamento frente às alterações ocorridas na terceira versão da BNCC.

Em primeiro lugar, ressaltamos a redução do texto inicial introdutório que, na segunda versão, apresentava a Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica. Observa-se que entre a segunda e a terceira versão houve uma redução de mais de duas páginas. A supressão, redução ou enxugamento significou um aligeiramento e até mesmo mudança conceitual, especialmente no que tange às discussões sobre desenvolvimento, aprendizagem e linguagem.

O parágrafo a seguir, por exemplo, foi suprimido sem que se mantivesse, ainda que de forma sintética, alguma referência aos seus pressupostos:

As crianças, desde bebês, têm o desejo de aprender. Para tal, necessitam de um ambiente acolhedor e de confiança. A representação simbólica, sob a forma de imagens mentais e de imitação, importantes aspectos da faixa etária das crianças da Educação Infantil, impulsionam de forma criativa, as interrogações e as hipóteses que os meninos e as meninas podem ir construindo ao longo dessa etapa. Por isso, as crianças, nesse momento da vida têm necessidade de ter contato com diversas linguagens; de se movimentar em espaços amplos (internos e externos), de participar de atividades expressivas, tais como música, teatro, dança, artes visuais, audiovisual; de explorar espaços e materiais que apoiem os diferentes tipos de brincadeira e investigações. A partir disso, os meninos e as meninas observam, levantam hipóteses, testam e registram suas primeiras “teorias”, constituindo oportunidades de apropriação e de participação em diversas linguagens simbólicas. O reconhecimento desse potencial é também o reconhecimento do direito de as crianças, desde o nascimento, terem acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de saberes e conhecimentos, como requisito para a formação humana, para a participação social e para a cidadania (BNCC, 2a versão, 2016, p. 55).

A retirada deste parágrafo resultou numa forma instrumental de se pensar a articulação entre saberes e conhecimento e as diferentes linguagens.

Em segundo lugar, destacamos as alterações no campo de experiência denominado “Escuta, fala, linguagem e pensamento”. Na terceira versão, encaminhada pelo Ministério da Educação ao Conselho Nacional de Educação, em abril de 2017, este campo passou a denominar-se “Oralidade e escrita”. A seguir apresentamos nossas ponderações em relação às alterações:

  1. A mudança do nome do campo de experiência expressa uma redução conceitual, marcando uma distinção importante entre as concepções de linguagem e de ensino/aprendizagem entre a segunda e a terceira versão. Os atos de fala e a capacidade de escuta são atividades humanas carregadas de sentidos e significados partilhados, que incluem não apenas o dito, mas também o presumido, os acentos apreciativos, as expressões corporais e todo contexto enunciativo. São atos constitutivos do pensamento e da imaginação. Ao se apropriarem da linguagem oral, as crianças não se apropriam simplesmente de uma língua, de um idioma, mas, sobretudo, de formas de expressar-se, de comunicar-se, formas estas que constituem o pensamento e a imaginação. A apropriação da linguagem escrita é igualmente um processo complexo que exige a articulação entre gestos, escuta, fala, desenhos, pensamento e imaginação para promover a interlocução entre sujeitos que podem estar distantes no tempo e no espaço. A gênese e o desenvolvimento dessas apropriações incluem as diferentes linguagens de uma maneira global e integrada e não ocorre de forma isolada. A opção em denominar o campo de experiência comoEscuta, fala, linguagem e pensamento” teve como finalidade evidenciar essa estreita relação entre os atos de falar e escutar com a constituição da linguagem e do pensamento humanos. Este campo de experiência não pode ser, pois, tomado como uma área do conhecimento ou como uma disciplina escolar que reduz o trabalho educativo à apropriação das linguagens oral e escrita. Esse campo de experiência expressa, de um lado, a integração das diferentes linguagens, ao longo do desenvolvimento infantil e, por outro lado, o caráter determinante que escuta, fala, linguagem e pensamento ocupam na construção das subjetividades, perpassando toda e qualquer atividade humana;
  2. O desenvolvimento da oralidade é, na terceira versão da BNCC, um dos objetivos centrais atribuídos à prática de leitura de textos. Entretanto, esse não é o aspecto mais relevante que essa prática propicia, apesar de ser um importante, mas não o principal, aspecto que se desenvolve por meio da leitura de textos. Ademais, desenvolver a oralidade não equivale a ampliar vocabulário. Por que dar destaque ao aumento do vocabulário, em detrimento, por exemplo, da ampliação das experiências relacionadas à imaginação, criação, alargamento das visões de mundo, capacidade argumentativa entre tantos outros?
  3. A segunda “aquisição” destacada é a “introdução da criança no universo da escrita”. Não se trata de introduzir as crianças, porque elas já estão imersas, desde seu nascimento, numa cultura determinada pela língua escrita. O que compete às instituições educativas é dar continuidade a um processo que se iniciou desde os primeiros contatos das crianças com o mundo. E, além disso, ler para as crianças não se resume a possibilitar a elas o contato com a cultura escrita;
  1. A afirmação de que “A literatura introduz a criança na escrita” pode resultar em uma indesejada interpretação de que o texto literário deva ser empregado, nas práticas pedagógicas, com a finalidade de ensinar as relações entre grafemas e fonemas, as regularidades e irregularidades do sistema de escrita, etc. A literatura, compreendida como um direito, como afirma Antonio Candido, por ser uma necessidade de todos os homens – já que não existe povo sem suas histórias, canções, mitos e lendas – é uma importante forma de conhecimento de si mesmo, do outros e do mundo, de ampliação de experiência, de ordenação da existência, de humanização, além da vivência estética que o texto e a obra literária no seu conjunto, que, no caso da literatura infantil, inclui as imagens e ilustrações, possibilitam;
  1. O mero convívio das crianças com os textos escritos, conforme expresso na terceira versão, não as leva a construir hipóteses sobre a escrita. O que leva as crianças a pensar sobre a escrita e a construir hipóteses para responder suas indagações é a participação ativa em práticas sociais nas quais a leitura e a escrita são elementos fundamentais para as interações. Para isso, é essencial que haja interlocução, mediações eficazes e instigadoras.
  2. A afirmação de que a escrita representa a oralidade está incorreta, do ponto de vista teórico. A escrita representa a língua e é justamente por isso que comporta as diferenças regionais e dos diversos grupos sociais. Esse erro conceitual pode induzir a práticas pedagógicas inadequadas como, por exemplo, forjar uma relação binária entre sons e letras.
  1. Na primeira e na segunda versão, houve um esforço para não separar a creche da pré-escola por se entender que essa separação seria imprópria do ponto de vista conceitual e pedagógico. O desafio seria o de assegurar a unidade da Educação Infantil, ainda que se respeitando as especificidades das idades que a constituem. A distribuição das idades em bebês: crianças de zero a um ano e meio; crianças bem pequenas: de um ano e sete meses a quatro anos e onze meses, e crianças pequenas: de cinco anos a seis anos e dois meses se mostra bem mais adequada, porque parte do ponto de vista dos sujeitos e não das determinações legais e institucionais. Essas últimas, ainda que importantes para a definição da Educação Infantil como etapa da Educação Básica, não podem justificar rupturas pedagógicas no interior desta etapa.
  1. A supressão do texto que expressava a concepção de linguagem escrita na Educação Infantil desconsidera, negligencia, torna invisível uma tensão que precisa ser explicitada e debatida, por ser determinante para a discussão sobre a identidade da Educação Infantil que se pretende assegurar. Uma identidade que reforça as especificidades da primeira infância e que, em nome delas, exige a construção de um projeto educativo próprio, não submetido às etapas subsequentes. Um projeto que respeita a criança, seus processos de desenvolvimento e seu direito de viver plenamente a infância e, ao fazê-lo, contribui para uma trajetória educativa sem rupturas e descontinuidades.

Diante dessas ponderações, esperamos que o Conselho Nacional de Educação:

  1. Retome, de maneira democrática, os espaços de discussão entre profissionais, gestores e interessados no tema da Educação Infantil para apoiar a elaboração da versão final da BNCC;
  2. Assegure que os autores das versões iniciais estejam presentes e tenham participação efetiva nos processos de discussão e deliberação;
  3. Solicite ao Ministério da Educação que apresente a metodologia que empregou para considerar as contribuições (presenciais e virtuais), encaminhadas por pessoas, setores e grupos da sociedade brasileira durante o processo de discussão da BNCC e que deveriam resultar na elaboração da terceira versão.

Assinam este documento, as coordenadoras do Projeto Leitura e Escrita na Educação Infantil:

Maria Fernanda Nunes – UNIRIO; Mônica Correia Baptista – UFMG; Patrícia Corsino – UFRJ; Vanessa Ferraz Almeida Neves – UFMG; Angela Maria Rabelo Barreto – FMEI, Rita de Cássia de Freitas Coelho – MIEIB.

 

Abril de 2017

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