02 de outubro de 2017

Rede Nacional Primeira Infância participa de debate no Ministério da Saúde sobre lei que obriga detecção de risco psíquico em bebês

Foto: Ricardo Lugon

A Rede Nacional Primeira Infância esteve representada pelo psiquiatra Ricardo Lugon, do GT Saúde, em reunião convocada pelo Ministério da Saúde, nos dias 28 e 29 de setembro, para debater a lei 13.438/2017. A lei, aprovada este ano, incluiu no Estatuto da Criança e Adolescente um artigo que torna obrigatória a aplicação de protocolo de detecção de risco psíquico em todos os bebês de zero a 18 meses. Na reunião em Brasília, estiveram presentes representantes de diferentes entidades da sociedade civil, autarquias, universidades, movimentos sociais, especialistas em primeira infância e em políticas públicas, além de servidores das áreas técnicas do Ministério da Saúde, em dois dias intensos de debates, que incluiu a pactuação sobre a necessidade de que sejam feitos esforços para a revogação ou anulação da lei.

“A utilização em escala de protocolos ou instrumentos para detecção de risco psíquico em bebês até 18 meses foi fartamente criticada, e debatidos estudos robustos que indicam não haver evidências científicas para rastreamento de risco psíquico em bebês”, afirma Ricardo Lugon, psiquiatra da Infância e Adolescência, Professor da Faculdade IENH e Psiquiatra do CAPSi de Novo Hamburgo/RS. Durante os debates, a Caderneta de Saúde da Criança (CSC) foi afirmada como o instrumento mais consistente para acompanhamento dos bebês e das crianças, devendo ser objeto de investimentos para seu melhor uso. “Por ora, o esforço coletivo alcançou um importante objetivo no que tange à proteção integral da criança, e à defesa do SUS. Foi muito importante a adesão de tantos profissionais, usuários, instituições e movimentos sociais àquele documento sobre os riscos da lei”, afirma Ricardo Lugon.
Confira abaixo uma nota pública sobre a reunião, que sintetiza os principais debates, e é assinada por alguns dos participantes no encontro.

Nota Pública sobre reunião no Ministério da Saúde para discussão da Lei 13.438/2017 

Acaba de ocorrer, entre 28 e 29 de setembro de 2017, reunião no Ministério da Saúde (MS) para debater a Lei 13.438, que foi sancionada em abril deste ano. Tal lei, que passa a vigorar em outubro próximo, altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, tornando obrigatória a aplicação a todas as crianças, nos seus primeiros dezoito meses de vida, de protocolo ou outro instrumento construído com a finalidade de facilitar a detecção, em consulta pediátrica de acompanhamento da criança, de risco para o seu desenvolvimento psíquico[1].

Desde a sua publicação, um conjunto de instituições e de profissionais tem alertado para o perigo que esse tipo de proposição implica. Sob o discurso de benefícios da detecção e cuidado precoces a todas as crianças brasileiras, ficaram invisibilizados muitos problemas e inconsistências, que foram alvo do debate durante os dois dias de reunião, da qual participaram entidades representantes da sociedade civil, órgãos de representação profissional, universidades, movimentos sociais e especialistas em primeira infância e políticas públicas. O objetivo para realização da reunião, de acordo com o convite do Ministério da Saúde (MS), foi o de estabelecer consensos, que serão expressos em documento oficial a ser enviado pelo MS ainda no mês de outubro/17, contendo as deliberações pactuadas.

Neste relato, apresentamos os principais encaminhamentos deliberados, seguidos dos temas que servirão de subsídio para a tomada de decisões.

Como principais resultados da reunião, podemos elencar:

  • A solicitação de todas as entidades presentes para que o Ministério da Saúde empenhe esforços para viabilizar a anulação/revogação da Lei 13.438/2017. Esta solicitação teve como base os pareceres contrários à lei emitidos pelo próprio MS, e

o conjunto de argumentos consubstanciados, apresentados e debatidos ao longo da reunião;

  • A afirmação consensual de que o instrumento mais completo para acompanhamento do desenvolvimento integral de bebês de zero a dezoito meses é a Caderneta de Saúde da Criança (CSC), posto ser um documento universal, de vigilância do pleno desenvolvimento do bebê e da criança, direito de toda criança brasileira, que reúne o registro dos mais importantes eventos relacionados à saúde infantil, consideradas as diferentes dimensões de crescimento e desenvolvimento, dentre as quais a dimensão psíquica;
  • A demanda de que a utilização de qualquer outro instrumento ou protocolo complementar à Caderneta de Saúde da Criança (CSC) deve ficar condicionado à emissão de parecer favorável da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (CONITEC);
  • A necessidade de expansão e qualificação dos diferentes serviços e estratégias da Atenção Básica em Saúde, em especial as ações interdisciplinares e multiprofissionais de puericultura em parceria com os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF); da Rede de Atenção Psicossocial, em especial dos Centros de Atenção Psicossocial infanto-juvenis (CAPSi) e CAPS I; e da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência, em especial dos Centros Especializados em Reabilitação (CER);
  • A unânime solicitação de ampliação urgente dos investimentos em educação permanente para profissionais da Atenção Básica e das diferentes áreas do SUS, com base na integralidade do cuidado e na Promoção de Saúde/Saúde Mental, e a partir da montagem de ações estratégicas como, por exemplo, a proposição de um Programa de Educação pelo Trabalho sobre Primeira Infância (PET Primeira Infância), dentre outros mecanismos públicos de formação pertinentes às diferentes realidades municipais/estaduais;
  • A também unânime solicitação de ampliação de ações de monitoramento/acompanhamento dos usos da Caderneta de Saúde da Criança (CSC), tendo em vista as pesquisas já existentes sobre potencialidades e desafios de sua utilização como registro do desenvolvimento de bebês e crianças, e das ações de cuidado realizadas. O estudo realizado pelo IFF/Fiocruz, sob coordenação da Prof. Maria Virgínia Marques Peixoto, foi apresentado e amplamente debatido na reunião, e contém resultados que indicam que há 100% de preenchimento da CSC quando o registro se refere à vacinação, contrapondo-se aos 9,9% quando o registro é relacionado aos aspectos do desenvolvimento da criança. Ainda merece destaque o resultado da pesquisa que indicou que 88% das mães usam a CSC para acompanhar o crescimento e desenvolvimento dos filhos, sendo a parte relacionada ao desenvolvimento a de maior interesse para elas. Potencializar o uso da CSC poderá ser uma via real de ação, contribuindo para modalidades mais participativas e corresponsáveis de acompanhamento e cuidado das crianças.

 

Apresentamos, abaixo, o resumo dos principais aspectos debatidos ao longo dos dois dias e que embasaram os encaminhamentos acima:

  • Não há evidências científicas suficientes que subsidiem a aplicação universal de instrumentos de rastreamento para risco psíquico em crianças abaixo de dezoito meses, em função da alta taxa de falsos positivos, o que só aumenta o potencial iatrogênico da adoção. Em resumo: inexistem estudos epidemiológicos consistentes que forneçam bases para o planejamento da aplicação em escala de protocolo ou instrumento para detecção de risco psíquico em crianças abaixo de dezoito meses;
  • Debateu-se o enorme risco de judicialização do sistema de saúde e dos profissionais, caso esta lei seja executada. Como ela determina aplicação de protocolo em consulta pediátrica, caso um profissional não o faça e, posteriormente, uma criança seja diagnosticada com transtorno mental, ele poderá ser interpelado judicialmente ‘por não ter detectado possível risco através de protocolo’. Da mesma forma, a exigência legal de avaliação por pediatras pode gerar um custo inestimável ao SUS, ao ter que responder judicialmente a uma iniquidade histórica de distribuição destes profissionais pelas diferentes regiões do país. Ainda: como a lei reduz as ações interdisciplinares de cuidado à consulta a pediatras, pode gerar desvalorização e até mesmo desresponsabilização de outros profissionais que fazem parte dos cuidados a bebês e famílias, atualmente responsáveis por 15 milhões de procedimentos anuais no SUS;
  • O Marco Legal da Primeira Infância (Lei 13.257/16) constitui um completo referencial para a organização dos cuidados integrais nesta faixa etária, incluindo a importância dos aspectos afetivos e psíquicos no desenvolvimento, a identificação de sinais de alerta ao pleno desenvolvimento, e as estratégias para a ampliação do acesso e a qualificação da atenção ofertada aos bebês e suas famílias;
  • Qualquer proposição para ações em saúde deve estar comprometida com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), devendo ser garantido o cuidado integral às crianças, por equipes multiprofissionais, organizado territorialmente e a partir de base comunitária. A noção de vigilância adotada pelo SUS implica práticas de atenção longitudinais e mecanismos para prevenção de agravos por meio de ações multidisciplinares e intersetoriais;
  • A Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC) – Portaria 1130/15 – expressa longa e consistente construção coletiva entre diferentes setores da sociedade, reunindo um conjunto de ações programáticas e estratégias para o desenvolvimento da criança em todas as etapas do ciclo de vida, sendo que o acompanhamento do desenvolvimento psíquico deve estar referido ao conjunto do cuidado integral aos bebês e suas famílias;
  • É preciso avançar na efetivação das estratégias previstas nas leis e normativas existentes, na educação permanente, no desenvolvimento de ações de promoção de saúde/saúde mental, na ampliação de equipes multiprofissionais, e na alocação de recursos que garantam tais ações.

 

Comprometemo-nos a divulgar amplamente o documento oficial do Ministério da Saúde, tão logo este seja publicado.

Assinam este comunicado, tendo estado presentes na reunião:

 

Como expert em atenção integral a bebês e seus cuidadores:

Claudia Mascarenhas – Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica IP/USP, Diretora Clínica do Instituto Viva Infância, Vice-presidente da Coordination

Internationalle des Psychologues et Psychanalystes qui Travaillent avec Autism e Cippa.

 

 Como especialista em Políticas Públicas de Saúde Mental para Crianças e Adolescentes:  

Maria Cristina Ventura Couto – Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psiquiatria e Saúde Mental (UFRJ), Professora Permanente do Mestrado Profissional em Atenção Psicossocial (IPUB/UFRJ) e Pesquisadora do NUPPSAM/IPUB/UFRJ.

  

Pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO): 

Biancha Angelucci – Psicóloga, Psicanalista. Docente e Pesquisadora FE/USP. Diretora da União Latino-americana de entidades de Psicologia (Ulapsi), militante do Despatologiza – Movimento pela Despatologização da Vida.

 

Pela Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME):

Luciana Togni de Lima e Silva Surjus – Terapeuta Ocupacional, Sanitarista, Doutora em Saúde Coletiva (UNICAMP), Docente do DPPSC/Unifesp.

 

Pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP):

Ilana Katz – Psicóloga, Psicanalista, Pesquisadora Latesfip/USP, Pós-doutoranda no IP/USP.

 

Pelo Departamento de Pediatria da FCM/Unicamp:

Maria de Lurdes Zanolli – Pediatra, Sanitarista, Doutora em Pediatria (Unicamp), Docente do Departamento de Pediatria da FCM/ Unicamp.

 

Pelo Movimento Despatologiza:

Bárbara Costa Andrada – Psicóloga, Doutora em Saúde Coletiva (IMS/UERJ), Pesquisadora do NUPPSAM/IPUB/UFRJ, militante do Despatologiza – Movimento pela Despatologização da Vida.

 

Pela Rede Nacional Primeira Infância: 

Ricardo Lugon – Psiquiatra da Infância e Adolescência, Mestrando em Educação na UFRGs, Professor da Faculdade IENH e Psiquiatra do CAPSi de Novo Hamburgo/RS.

 

De muitos lugares do Brasil, 1/10/17.

[1] Disponível em: http://bit.ly/2fDq4iE

voltar